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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

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Nosso prezadíssimo Hélio Beltrão, um dos mais inquestionáveis destaques contemporâneos na luta pelo triunfo das ideias da liberdade no Brasil, gentilmente replicou em suas redes sociais nossa recente entrevista ao Estadão. Com a civilidade própria de quem sabe o significado de um debate saudável, ele incluiu uma observação crítica – uma divergência não exatamente inesperada, mas que nos suscitou algumas reflexões que gostaríamos de dividir com os leitores.

Em nossa entrevista, comentamos: “As pessoas com uma diferença mínima de posição não aceitam conversar. Submetem tudo ao projeto partidário de um candidato, como se o outro, por discordar, fosse um inimigo. Isso está acontecendo, infelizmente. Não vou generalizar, mas se você olhar o caso dos libertários, por exemplo, vai observar que qualquer um que defenda um pouco mais de Estado do que eles é considerado socialista”.

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O que se tinha em mente ao formular o comentário, naturalmente, não era a generalidade dos autointitulados libertários. Era, isto sim, certa parcela em suas fileiras que rejeita sistematicamente algumas contribuições valiosas, políticas ou teóricas, em virtude de diferenças menores que pesam pouco na prática quando a batalha ainda é contra um inimigo muito maior.

É assim que, para alguns – frise-se novamente, sem generalizações, sequer considerando que sejam a maioria -, ficando apenas nos exemplos teóricos e intelectuais, convém o pensamento extremo de acreditar que Friedrich Hayek, grande popularizador austríaco das ideias do liberalismo econômico no século XX, seria quase a reencarnação de Karl Marx por acreditar em algumas posturas mais ativas do Estado e ter negado que o liberalismo seja sinônimo de “laissez-faire absoluto”; assim como a defesa da existência de um Banco Central, por exemplo, transforma Milton Friedman e a Escola de Chicago em bolcheviques. É contra essas posturas radicais e intransigentes – não, evidentemente, negando aos críticos a possibilidade de contestar todas essas teses – que nossa afirmação foi feita.

Hélio então comentou: “Sobre a questão de libertários e anarcocapitalistas como eu julgarem que a defesa de intervenções estatais seja entendida como uma política ‘socialista’ (ou centralizadora), não vejo como entender diferente. É uma questão de grau: quem defende mais intervenções estatais é mais socialista, e quem defende menos é menos socialista. Mas se defende algumas intervenções, é socialista em algum grau. Não aceitar isso é dissonância cognitiva. Isto não é considerado um ‘pecado’ por libertários, mas é considerado um erro fatal, que tende a levar a consequências danosas”.

Nossa hipótese, que nos parece oportuno lançar aqui, é de que a nossa divergência é, fundamentalmente, de opções semânticas, oriundas da polissemia – sempre ela, quase sempre inevitável -, ainda que por detrás dessas opções existam também diferenças de ênfase ideológica.

O que Hélio faz em seu comentário é adotar um atrelamento de significado entre “socialismo” e “intervenção” como sinônimos, adotando a palavra em um sentido relativo e gradativo. Ele quer dizer que – e aqui corremos o risco de repetir o que já está claro -, independentemente das cores ideológicas e da substância estética e retórica com que se adornem, quaisquer medidas que aumentem a esfera de atuação do Estado agregam um “grau maior de socialismo”, e mesmo em “grau menor”, qualquer medida de interferência do Estado, em si mesma, é essencialmente “socialismo”.

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Essa definição econômica é uma escolha de quem a utiliza, perfeitamente viável. É seguida também por Murray Rothbard e por Geanluca Lorenzon, em seu recomendado estudo Ciclos Fatais: Socialismo e Direitos Humanos. Também é, em ponto extremo, a definição de Herman Hoppe, para quem, em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo“há um Estado onde há socialismo”. Essa definição rigorosamente econômica permite considerar, por exemplo, a existência de um “socialismo conservador”, tanto quanto de um “socialismo de esquerda”, porque certos movimentos conservadores ou democratas cristãos acatarão doses mais elevadas de intervencionismo estatal.

Porém, mesmo em autores que utilizam uma acepção de socialismo baseada fundamentalmente em uma interpretação econômica do seu significado, parece haver divergências semânticas no que diz respeito à associação imediata de sentido entre “intervenção/intervencionismo” e “socialismo”. Com efeito, alguns dos principais autores austríacos conhecidos no Brasil, que tivemos a oportunidade de ler, estabelecem claras distinções entre esses conceitos.

Hayek, notório por denunciar que o aumento do Estado conduz gradualmente para “O Caminho da Servidão”, na obra de mesmo nome, diz que a “dicotomia entre a intervenção ou a não intervenção do Estado é inteiramente falsa, e o termo laissez-faire é uma definição bastante ambígua e ilusória dos princípios em que se baseia uma política liberal. Está claro que todo o Estado tem de agir, e toda ação do Estado implica intervir nisto ou naquilo. Mas não é isso que vem ao caso. O importante é saber se o indivíduo pode prever a ação do Estado e utilizar esse conhecimento como um dado na elaboração de seus planos particulares – o que significa que o Estado não pode controlar a forma como seu mecanismo é empregado e que o indivíduo sabe exatamente até que ponto será protegido contra a interferência alheia.”

Já Mises, em Ação Humana, ao contrário de Hayek, defenderá o uso da expressão “laissez-faire”, e, desta vez de acordo com Hayek, assinalará que o incremento de medidas intervencionistas para equacionar o que as autoridades do Estado julgarem “socialmente indesejável” tende a conduzir ao socialismo. Contudo, será ainda mais explícito em estabelecer definições distintas para “socialismo” e “intervencionismo”: “É necessário (…) evitar que se confunda socialismo com intervencionismo. O intervencionismo ou a economia de mercado obstruída difere do modelo alemão de socialismo pelo simples fato de ainda ser uma economia de mercado. As autoridades interferem no funcionamento da economia de mercado, mas não desejam eliminá-lo completamente. (…) Não pretendem as autoridades integrá-las (suas medidas) num sistema que determinaria todos os preços, salários e taxas de juros, colocando em suas mãos o controle absoluto da produção e do consumo”.

Ainda Mises, mas agora em Uma Crítica ao Intervencionismo, dirá que medidas tomadas “com o fim de preservar e assegurar a propriedade privada não são propriamente intervenções”. Um anarcocapitalista fatalmente discordará de Mises, que aqui rechaça completamente o anarquismo; contudo, se Mises não reconhecia então sequer que essas medidas são “intervenções”, quanto mais dizer que são “socialismo” – ao menos não ao redigir seus textos analíticos. Uma coisa é proferir insultos em momentos de destempero – como o famoso “You are all a bunch of socialists” que Mises teria exclamado para alguns colegas em uma reunião da Mont Pélerin -, outra é o que consta de suas obras.

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Na obra dele, “socialismo” é sempre definido, recordando-se que a definição é também aí rigorosamente econômica, como o sistema de economia amplamente planificada, não havendo qualquer consideração “de grau” possível. No conceito misesiano, o intervencionismo, este sim, em seus diversos graus, pode levar ao socialismo, mas não é socialismo em si mesmo. O defensor do intervencionismo, portanto, em um grau limitado, não seria, para Mises, um “socialista em algum grau”, como é para o nosso Hélio Beltrão, simplesmente porque o conceito não faria sentido. Sequer a existência de empresas estatais, por exemplo, para Mises, configura necessariamente um sistema socialista.

Por interessantes que sejam essas diferenças semânticas – dentro das quais não nos parece que se trate tanto de uma discussão de “certo” ou “errado” -, pessoalmente, respeitando as disposições em contrário, iríamos além: não gostamos dessa definição exclusivamente econômica. Parece-nos importante avaliar, sim, em primeiro lugar, a gênese histórica dos conceitos, e concomitantemente, as implicações estéticas e filosóficas de que se revestem.

A palavra “socialismo” surge no século XIX; segundo Fernando Piteira Santos, em As Grandes Doutrinas Econômicas, não se sabe bem se com Robert Owen ou Pierre Leroux. Ela se consagra no uso através dos chamados socialistas utópicos – o próprio Owen com seu fracassado investimento na criação de “meios cooperativos” e sua estranha crítica ao lucro, Fourier e sua teoria dos “falanstérios” e Saint Simon e sua busca por uma “ditadura científico-econômica” dos industrialistas que faria com que todas as “classes sociais” se dissolvessem em uma grande “classe trabalhadora” (influente, aliás, sobre o fundador do Positivismo, Augusto Comte). Em seguida, é apropriada por Marx e Engels, que se proclamam fundadores do “socialismo científico”, escudando a implantação do sistema em supostas leis cientificamente previsíveis, em uma composição com o sistema hegeliano, como uma superação dos autores anteriores. Surge, portanto, atrelada a um complexo de autores que lidaram com a específica realidade do século XIX e, bebendo da fonte da ideologia dos revolucionários franceses – tendo em Rousseau e Babeuf importantes precursores -, desenvolveram propostas de esquematização e planificação socioeconômica com a meta filosófica e simbólica do igualitarismo social e de perseguir pela ação política uma sociedade superior, em maior ou menor grau, dessa ou daquela maneira.

Dizer que o Estado é sinônimo de socialismo equivale a dizer que o “socialismo”, tal como concebido originalmente, em termos do que a própria palavra significa, surgiu para combater a si mesmo, pois o mercantilismo, o absolutismo, os impérios da Antiguidade, já eram “socialismos” antes de o socialismo nascer. Dizer, ainda, que um Hayek, um Milton Friedman ou um democrata cristão que defendem essa ou aquela presença do Estado além da idealizada por libertários ou anarquistas é socialista por conta disso, sem que a dita meta filosófica e simbólica igualitarista totalizante esteja por detrás de suas iniciativas, parece-nos ter o franco defeito de esvaziar a palavra de seu peso histórico original.