Morreu dias atrás, aos 95 anos Stanley Martin Lieber, mais conhecido como Stan Lee. Mas a verdadeira fama pertence às suas criaturas, os heróis da Marvel que quase todos nós aprendemos a amar, seja nas revistas em quadrinhos, seja nas produções multimilionárias para as telas do cinema. Personagens como Homem-Aranha, Hulk, a turma do Quarteto Fantástico, o Surfista Prateado, o Homem de Ferro, Thor e os X-Men saíram de sua cabeça, em parceria com Jack Kirby, Steve Ditko e seu irmão Larry Lieber.
Seu falecimento nos traz reflexões sobre a importância dos heróis na cultura. Por coincidência, estou lendo o clássico The Hero With a Thousand Faces, de Joseph Campbell, publicado em 1949. O livro, que influenciou inúmeros criadores, entre eles George Lucas, autor de Guerra nas Estrelas, faz uma análise comparada de mitologia, discutindo com base em conceitos psicanalíticos a estrutura comum na jornada do herói arquétipo encontrado em quase todas as diferentes culturas.
De forma bem resumida, o herói se aventura num mundo de maravilhas e perigos sobrenaturais, saindo do cotidiano para encontrar uma vitória decisiva, retornando em seguida com o poder para ajudar seus semelhantes. O mito do herói é como uma passagem secreta que se abre por onde passam energias inextinguíveis do cosmos para a manifestação cultural humana. É a forma que temos para narrar histórias que servem como referência moral, um norte a ser seguido, uma inspiração para todos que precisam enfrentar os ritos de passagem e amadurecer ou vencer desafios na vida.
Como coloca George Lucas, Campbell mergulha em séculos de mitologia para nos mostrar que estamos todos ligados por uma necessidade básica de escutar histórias e compreender melhor a nós mesmos. O fio condutor desses mitos é a frágil condição humana, do animal que mais tempo depende da mãe ao nascer, e que precisa lidar com o pai “intruso” nessa equação. Campbell bebe muito de fontes psicanalíticas, como Freud e Jung, para analisar a psique humana nessa trajetória de libertação e crescimento.
O herói, portanto, somos todos nós, de certa forma, e por isso nos identificamos tanto com super-heróis dos quadrinhos, especialmente aqueles mais “humanos”. Podemos pensar no Homem-Aranha, franzino, sempre em dificuldades financeiras, vítima de bullying, que desenvolve poderes ao ser picado por uma aranha radioativa. Seu heroísmo, porém, não vem com os poderes em si, mas com sua mudança de atitude, com o que ele faz desses poderes.
O herói é o homem que encontra uma submissão por conta própria, uma submissão do ego, da vaidade, por meio do nascimento de algo novo, um nascimento que conquista a morte. Para termos essa experiência de sobrevivência longeva, um “nascimento recorrente” contínuo se faz necessário. A morte é inevitável, mas, sendo crucificados, podemos ressurgir, completamente novos. Uma metáfora para a morte interior que temos de encarar, da criança desamparada em nós, para renascermos mudados, amadurecidos, fortes e heroicos.
Por isso as aventuras dos heróis envolvem florestas insondáveis, profundeza infinita do mar, espaço desconhecido, tudo repleto de monstros terríveis e também forças do bem, que nos auxiliam nessa jornada. Os obstáculos são parte fundamental do heroísmo nessa travessia de um lugar conhecido e seguro para outro desconhecido, novo. O trabalho tem de ser difícil, perigoso, pois é uma caminhada em busca do autoconhecimento e do autodesenvolvimento na vida.
A maioria, claro, prefere escolher o caminho mais seguro, menos aventureiro, dentro de suas rotinas tribais. E por isso mesmo nos encantamos tanto com os heróis: são os que escutam um chamado interno forte demais e embarcam nessa aventura. Apreciamos sua coragem, determinação, sacrifício. Eles nos servem de inspiração, de referência nessa busca própria por nós mesmos, no labirinto de nossos corações. Outros, há milênios, travaram as mesmas batalhas, desafiaram os mesmos inimigos, e deixaram como legado o trajeto para escapar do labirinto. Precisamos apenas seguir seus passos.
Se Jesus foi crucificado para nos salvar, se o Homem-Aranha abriu mão do próprio amor de sua vida para nos proteger, se o Batman é capaz de assumir os crimes do procurador monstruoso para manter a chama da esperança acesa em Gotham City, então temos a obrigação de ao menos tentar vencer algumas batalhas internas, deixar o excesso de vaidade um pouco de lado para fazer a coisa certa, priorizar de vez em quando o bem comum, o próximo.
Mitos são fundadores de culturas, que por sua vez servem como imaginação moral para transmitir valores. No mundo temos vários exemplos de heróis reais. O policial que se arrisca para defender uma potencial vítima de um marginal; o soldado fardado que viaja para terras distantes para lutar por nossas liberdades; o alemão que escondeu judeus em sua casa durante a perseguição nazista; o juiz que assume todo o fardo de declarar guerra às organizações criminosas para deixar o país um lugar um pouco melhor e mais seguro etc.
Em todos esses casos, temos um ato de coragem e sacrifício, de quem consegue dominar seu próprio ego para “fazer a coisa certa”, mesmo com todos os riscos que isso representa. Cínicos podem tentar reduzir tais atitudes a uma busca dos interesses particulares e mesquinhos, criar uma narrativa de que todos, de certa forma, agem de olho no próprio umbigo. Mas a verdade é que alguns de nós chegam a um patamar superior e, seguindo um chamado da própria consciência ou de Deus, deixam de lado o egoísmo e se sacrificam pelo próximo.
São raros, sem dúvida. E por isso são nossos heróis. Quem tenta diminuí-los normalmente o faz por inveja. “Pobre do povo que precisa de heróis”, diz um personagem do comunista Brecht. Não! Pobre do povo que não tem heróis, ou que tem os heróis errados, como Macunaíma, aquele sem caráter. Uma civilização que mereça tal título terá justamente os heróis certos, aqueles que nos ensinam, por meio dos mitos, a buscar a coragem necessária para fazer o que deve ser feito, apesar dos riscos, dos custos pessoais.
Por que Batman corre da polícia se não fez nada de errado?, pergunta o filho do comissário Gordon. Porque ele pode suportar isso, responde o pai. Porque ele é um herói – não o que Gotham merece no momento, mas aquele de que precisa. E precisamos desses heróis, não resta a menor dúvida.
Artigo originalmente publicado pela Gazeta impressa
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