Há uma boa entrevista com Steven Pinker na Folha hoje. Ele comenta sobre seu novo livro, uma defesa do legado iluminista, que junto com o anterior forma uma ampla sustentação da tese de que o mundo está muito melhor hoje, mas nos recusamos a enxergar isso, em parte por conta da mídia e também de nossa natureza humana.
Gosto do Pinker, apesar de achar sua visão do iluminismo e das democracias liberais excessivamente otimista, quase um “wishful thinking”. O progresso material não anda pari passu ao espiritual, e se é verdade que melhoramos em muitos aspectos, também parece inegável que retrocedemos em outros. Recomendo o filósofo John Gray como contraponto.
Dito isso, acho que ele tem um ponto sobre o risco do populismo reacionário, que idealiza um passado inexistente, uma Idade de Ouro, um Éden perdido, que precisa ser resgatado ainda que por meio do autoritarismo. Diz ele:
O sr. afirma que o populismo autoritário é um dos movimentos de reação contra o iluminismo. A ascensão desse populismo é preocupante? Muito preocupante, porque o progresso não é automático, nem inevitável, ele depende dos ideais do iluminismo. Portanto, se um movimento contra o iluminismo se torna dominante, isso pode desacelerar o progresso ou levar a retrocesso. Já houve várias fases de retrocesso na história, por exemplo, durante a ascensão do fascismo nos anos 30 e 40, que levou o mundo a se voltar contra a democracia liberal. No livro, eu discuto como os movimentos atuais contra o iluminismo são uma continuação de movimentos do século 19 que glorificavam nação, raça ou religião, em vez de focar os indivíduos, e que olhavam para o passado como uma era de ouro em vez de tentar resolver problemas e fazer um futuro melhor que o presente.
O conservador de boa estirpe não quer parar o tempo, muito menos fazer o relógio voltar, e tampouco foca no coletivismo. Ele quer avançar, foca no indivíduo, mas preservando aquilo que é bom para o coletivo, e que permite o próprio progresso dos indivíduos. Ele entende que a liberdade individual não sobrevive num vácuo de valores morais.
Em meu novo livro, Confissões de um ex-libertário, defendo justamente que os liberais clássicos bebam dessa fonte conservadora para salvar o liberalismo dos “liberais” modernos. O pêndulo do liberalismo extrapolou para o lado “progressista”, colocando em risco o legado iluminista e as democracias liberais. Isso, porém, não tem nada a ver com reacionarismo, como explico no livro.
E gostei bastante da resposta de Pinker sobre política de identidade também, uma bandeira “progressista” que mesmo liberais mais à esquerda têm condenado, como é o caso de Mark Lilla. Pinker foca no indivíduo, o que é incompatível com essa visão coletivista presente nas políticas de identidade:
Política identitária é uma teoria de que a humanidade é dividida em grupos baseados em raça, gênero, e orientação sexual, que sempre estão brigando por poder. É a teoria de que precisamos lutar para que um grupo tenha menos poder, para que o outro possa ter mais. Isso é contrário à ideia de que todos os humanos têm a possibilidade de prosperar e sofrer, e que podemos ser engenhosos descobrindo soluções que vão melhorar a vida de todo mundo, não só de determinados grupos. Da mesma maneira que é errado discriminar alguém por causa de raça ou gênero, é errado tentar virar a mesa e fazer outra raça ou gênero superior. Igualdade significa que todos têm direitos iguais, independentemente de raça, gênero ou orientação sexual.
Mas e quanto a corrigir injustiças ou desequilíbrios históricos? É possível que existam legados históricos de discriminação, e é legítimo ajudar pessoas que foram discriminadas, é o princípio da justiça. Mas isso não se aplica a todas as pessoas de uma determinada raça. Então usar políticas raciais acabaria discriminando contra alguns indivíduos, e isso geraria ressentimento e reação –que é o que estamos vivendo nos EUA hoje.
É essa reação, esse ressentimento, esse backlash que temos visto no mundo hoje, com o crescimento da tal “extrema-direita” ou da “alt-right”, com sua pegada xenófoba, racista. Se a esquerda vier com Black Lives Matter e a demonização dos brancos, grupelhos ofendidos vão criar movimentos de supremacismo branco. Para toda ação há uma reação. Essa reação, por sua vez, vai produzir mais radicalismo no outro lado, num círculo vicioso. A marcha das “minorias oprimidas” e o multiculturalismo fomentam o discurso populista à direita.
A Antifa e os malucos da “alt-right” são melhores amigos, pois se alimentam do ódio recíproco, e ambos ameaçam as conquistas das democracias liberais, em crise. De fato, há muito que ser celebrado e preservado nesse legado iluminista. O iluminismo também não é algo monolítico, e há, como Gertrude Himmelfarb tão bem explicou em Os caminhos para a modernidade, um iluminismo francês e outro escocês (esse mais respeitoso para com as tradições e as virtudes sociais, ou seja, mais conservador).
Às vezes fico com a impressão de que Pinker tem mais apreço pelo legado francês racionalista, enquanto julgo melhor o legado escocês. Acho perigoso endeusar a Razão e defender utopias revolucionárias. Mas isso não invalida o alerta de Pinker: há muito que ser valorizado no iluminismo e nas democracias liberais, e que pode estar em xeque diante do avanço do populismo autoritário, uma reação aos excessos do “liberalismo progressista”.
Rodrigo Constantino
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