A reportagem de capa do GLOBO hoje traz à tona uma triste e preocupante realidade não só do Rio, mas do Brasil como um todo:
Não bastasse a cobrança por serviços como gás, “gatonet” e transporte alternativo, as milícias do Rio decidiram explorar comercialmente a eleição. Grupos criminosos criaram uma espécie de imposto, batizado de “taxa eleitoral”, para autorizar a campanha em áreas dominadas. O candidato que quiser exibir sua propaganda nessas regiões tem de desembolsar de R$ 15 mil a 120 mil. Em troca, tem o privilégio de militar num ambiente exclusivo, distante da alta concorrência por cargos do restante da cidade.
Na cartilha dos milicianos, quem não paga a “taxa eleitoral” não entra nas áreas dominadas. A tabela, no início da campanha, previa pagamentos de R$ 80 mil a R$ 120 mil, dependendo da densidade eleitoral do bairro. A Zona Oeste do Rio, região que tradicionalmente define eleições, por ser mais populosa, é a mais valorizada. As áreas mais nobres são Campo Grande e Santa Cruz. Há cobrança ainda nos bairros de Inhoaíba, Santa Margarida, Rio das Pedras, Guaratiba e na localidade do Magarça. Na reta final da campanha, foi estabelecido um “desconto”: a tabela foi reduzida para R$ 60 mil nos últimos dez dias.
As favelas da Zona Norte também não ficaram de fora. Em comunidades como a Kelson’s, na Penha, o “ingresso”, com direito a instalação de placas nas casas dos moradores, é de R$ 15 mil. Nestes locais, é comum ver penduradas propagandas de, no máximo, três candidatos.
Já em cidades da Baixada, os valores ficam entre R$ 50 mil e R$ 80 mil, para a campanha de setembro a 2 de outubro. Há grupos atuando em Nova Iguaçu, Seropédica, Duque de Caxias e Magé, muitos deles depois de expandir seus domínios da Zona Oeste para essas áreas.
Essa situação nos remete diretamente ao caso mexicano, praticamente de um “estado fracassado”, dominado pelo poder paralelo do tráfico. Muitos liberais e libertários – e eu tendo a concordar – acham que a “guerra contra as drogas” empreendida pelo governo americano em nada ajuda e em muito atrapalha, justamente porque a demanda não desaparece, e a oferta será feita pelos marginais latino-americanos. Quem viu “Narcos” tem ideia da coisa.
Mas a legalização das drogas não é uma panaceia, não seria uma bala de prata, sem falar de possíveis efeitos negativos também em outras áreas. A prova disso é o fato de que esses criminosos, traficantes ou milicianos, controlam o território como um todo, e bancam o estado paralelo e mafioso em tudo, ou seja, controlam os bens e serviços também legais. Vide o gás, o “gatonet”, e agora até o direito de ir e vir dos candidatos.
Em artigo publicado no GLOBO, o jornalista Chico Regueira comenta sobre o avanço desses “narcoestados”, e mostra como sua simbiose com o estado tem representado uma ameaça crescente à democracia:
O crime organizado está nacionalizado no Brasil. A exportação para outros estados do modelo de facções e milícias, criado no Rio de Janeiro e em São Paulo, parece definitivamente não estar sendo percebida pelo Ministério da Justiça.
A ausência de um projeto brasileiro integrado de combate a esses grupos facilita a expansão deles em escala industrial por capitais e cidades médias. As políticas baseadas na repressão policial feita em trincheiras, esquina por esquina, não levam em conta a extensão territorial do país e a capilaridade das diversas facções.
Não é mais somente o monopólio da venda de drogas ou do gás no varejo que deve ser levado em questão, mas também a ocupação das cidades por facções e milícias que se impõem como um poder paralelo instituído através de ações violentas, torturas e assassinatos, que disseminam o medo em qualquer um que levante a voz contra seus interesses.
[…]
Estamos diante da formação de narcoestados brasileiros que, como um câncer, se instalam silenciosamente, inspirados no modelo mexicano em que o crime se faz representado no Poder Executivo e Legislativo, ditando leis não somente através da política do terror e do medo, mas defendendo também os interesses de seu “negócio”.
Nossas instituições não estão percebendo, ou não querem ver, a profissionalização do crime, seja através de milícias ou facções que se embrenham cada vez mais no Estado, tornando-se parte dele como um cupim que pode, aos poucos, corroer toda a sua estrutura. Será que acordaremos a tempo de combater esse fenômeno, ou já é tarde demais?
É uma realidade bastante complexa. E, como dizia H.L. Mencken, “para cada problema complexo há uma solução clara, simples – e errada”. Quem quer que ofereça uma solução mágica está se iludindo ou enganando os outros. Não há saída fácil para essa sinuca de bico. A coisa chegou a esse patamar de complexidade ao longo de décadas de descaso, de cumplicidade do estado, de ausência de policiamento, de fácil entrada de armamento pesado por nossas fronteiras.
Tudo isso ajudou a criar essas fortalezas do crime, que no Rio apresentam um agravante: estão inseridas bem dentro da cidade, ao lado dos bairros nobres. Talvez a única resposta honesta aqui seja um misto de várias propostas fornecidas por todos os lados, à exceção das bandeiras sensacionalistas da extrema-esquerda, que é conivente com o crime.
Talvez seja preciso mais policiamento, menos estado em termos de impostos e burocracia e mais estado em termos de segurança e justiça, tentativa de estabelecer a titularidade da propriedade de forma legal, políticas sociais, mudança da cultura (coisas como o funk que tem ajudado a degradar os valores morais nessas comunidades deveriam ser combatidas e não enaltecidas pela elite), legalização das drogas (há controvérsias), menos burocracia para que o cidadão ordeiro possa comprar uma arma para legítima defesa etc.
Enfim, desconfie de todo aquele que reduz um problema tão complexo a uma simples explicação. Estamos lidando com estados fracassados, com estados paralelos erguidos pelos criminosos dentro de nosso estado-nação, feudos de marginais onde as regras são impostas de cima para baixo sem nenhum mecanismo de pesos e contrapesos.
Os anarquistas podem até alegar que a grande organização criminosa é o próprio estado, mas, no fundo, até eles sabem que é melhor viver sob uma democracia capenga com um estado de direito igualmente capenga do que sob o jugo de traficantes ou milicianos.
Por isso escolho o caminho liberal clássico com viés conservador: redução drástica do estado em diversas áreas, principalmente na economia, mas um estado com força suficiente para exercer suas funções básicas, precípuas, como segurança e justiça, além de um esforço voluntário constante no campo dos valores morais para a preservação de certas tradições e costumes mais elevados (não confundir com imposição moralista pelo estado).
Claro que, na prática, é mais fácil falar do que fazer. Quando o estado concentra poder para tanto, sempre há o risco de ele abusar desse poder em outras esferas. Ainda assim é menos pior do que viver num território dominado pelos “senhores feudais” que controlam não apenas a venda de drogas ilegais, mas tudo, a começar pela liberdade de expressão e de ir e vir.
Você pode achar que imposto é roubo e o estado é ilegítimo e que ser parado por um policial é o verdadeiro crime, mas prefere mesmo ser parado por um miliciano ou traficante?
Rodrigo Constantino
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS