O mundo do “debate” político, cada vez mais polarizado e tribal, costuma emburrecer a pessoa. Ela não se torna capaz de preservar um grau saudável de independência crítica, pois se sente na necessidade de pertencer a uma das duas tribos, num universo maniqueísta onde só existe o preto e o branco – enquanto a cor predominante no mundo real é o cinza. É assim que muitos se tornam defensores fanáticos de Trump, e precisam concordar com tudo que o presidente faz, enquanto outros demonizam o republicano e precisam enxergar maldade e safadeza em cada ato.
Mas a realidade é bem diferente: Trump tem qualidades e muitos defeitos, acertou bastante até aqui, mas também errou muito. E a única postura razoável, aceitável, ao menos para quem deseja manter o pensamento independente, é elogiar quando há acertos e criticar quando há erros. É o que faz Ben Shapiro, por exemplo. E no seu podcast desta quinta, Shapiro simplesmente descascou Trump. Estava com raiva mesmo, e com toda razão. O tema foi a negociação com a ditadura coreana, que terminou – até aqui – sem nada concreto, com Trump abandonando a mesa.
O problema, para Shapiro, não é Trump sair da negociação, mas ter entrado nela para começo de conversa, sem qualquer indício de um plano bem bolado. O presidente achou mesmo que com alguns elogios iria levar um ditador perverso a simplesmente abandonar suas bombas nucleares, a única coisa que o mantém no poder e como agente relevante da geopolítica? Se Kim Jong-un perder esse trunfo, sabe que é retirado do poder imediatamente, no minuto seguinte. Ele pode ser mau, mas não é burro.
Trump tinha adotado a estratégia de falar mais grosso há poucos meses, mencionando o tamanho do botão nuclear que ele tem, muito maior do que o do coreano. Depois conseguiu se sentar na mesa de negociação pela primeira vez em décadas, o que foi muito comemorado, como uma conquista. Mas foi conquista de quem? Para quem importa mais ter essas imagens? Especialmente com um Trump sorridente, tecendo elogios inaceitáveis ao ditador que manda matar seus próprios parentes?
Se fosse uma tática pragmática que levasse a resultados concretos, poderíamos até engolir. Mas quando Trump sai de mãos abanando e deixa para trás esses elogios e imagens, tudo que conseguiu foi desmoralizar a América, bastião do mundo livre. A fala do presidente sobre o caso do americano espancado até virar um vegetal pelo regime coreano foi uma das coisas mais asquerosas já vistas.
Trump levou a família do rapaz para seu primeiro discurso do “State of the Union”, há apenas dois anos, e agora diz, para o mundo todo, que acredita na palavra de Kim de que o ditador ficou “triste” com o ocorrido e que não tem nada a ver com isso, que as prisões coreanas são duras mesmo e se trata de um país com milhões de pessoas? É como poupar Fidel Castro pelos fuzilamentos no paredão cubano!
Do ponto de vista moral, isso é simplesmente podre e inaceitável. Trump envergonhou os americanos e todos aqueles que admiram a América como farol da liberdade e de princípios e valores decentes. Imaginem o que a mãe do rapaz deve ter sentido ao ouvir essa fala do presidente, aliviando a barra daquele que destruiu a vida do seu filho só porque ele retirou um poster do ditador da parede de seu quarto!
O único americano mais famoso que foi visitar Kim Jong-un é o jogador de basquete Dennis Rodman, não exatamente um grande ícone de inteligência ou moral. Será que as trocas de “carinho” entre Trump e Kim valem mais para os americanos ou para o ditador, que agora pode usar tais imagens e falas para se vender como um líder normal para o mundo? E quem diz que a alternativa a tais “juras de amor” é uma guerra nuclear insana está apelando: o gordinho é atômico há quase duas décadas e até agora nada aconteceu.
Trump não precisa declarar guerra, e nem deve. Pode tentar negociar um acordo, desde que de forma inteligente e com um trabalho sério de bastidores pelo staff diplomático, para sondar a viabilidade de um acordo razoável antes de se sentar à mesa e sorrir enquanto elogia um psicopata assassino. Posso morder a língua ainda, assim como Shapiro? Sim. Por algum milagre algo bom ainda pode surgir dessa coisa toda. Mas até aqui o que temos é vergonhoso, e mostra que Trump cedeu muito, e não recebeu nada em troca.
Quem acha que palavras são apenas palavras e que Trump não cedeu nada de concreto desmerece o poder dos valores morais. Reagan pode ter negociado com Gorbachev, mas nunca deixou de apontar para o regime soviético como “império do mal”. E não foi sua “amizade” com o ditador que levou à queda do Muro de Berlim e ao fim da União Soviética, mas sim fatores mais estruturais. O que Trump conseguiu de fato ao elogiar um dos seres humanos mais abjetos que já existiram? Apenas manchar a reputação da América perante o mundo, nada mais. Trump, porém, tenta manter o otimismo, e ainda parece apostar em seu “bom relacionamento” com o ditador assassino:
“Vamos ver o que acontece?”, essa é a estratégia de negociação? Sim, os cínicos vão dizer que o mundo da geopolítica é assim mesmo, que mentir faz parte sempre, que ninguém deve levar a sério palavras ou imagens com sorrisos e apertos de mão. Mas há um limite! Quando um presidente americano, de graça, resolve poupar o líder sociopata das atrocidades que seu regime comete, e tudo isso na vã esperança de que basta uns elogios para que o ditador decida abrir mão de todo seu poder, aí temos uma linha que jamais deveria ter sido cruzada.
Rodrigo Constantino
A festa da direita brasileira com a vitória de Trump: o que esperar a partir do resultado nos EUA
Ministros do STF fazem piada sobre vitória de Donald Trump; assista ao Entrelinhas
Com imigração em foco, Trump começa a projetar primeiros decretos como presidente dos EUA
Slogans x resultados: a maior vitória de todas é a de Trump
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião