Por Lucas Berlanza, publicado no Instituto Liberal
Há um ano, estávamos acordando do nosso pior pesadelo – descobrindo, lamentavelmente, que, em verdade, continuávamos no pesadelo. No dia 26 de outubro do ano passado, a presidente Dilma Rousseff foi reeleita. Como disse Mario Vargas Llosa, cometemos nosso maior erro como nação. E parece que já faz muito mais tempo desde então, tantas foram as peripécias que se sucederam.
Doze meses em que todas as mentiras se desnudaram, todo o estelionato eleitoral se expôs a olhos vistos. Em que a Operação Lava Jato instalou o medo entre os caciques que, quer no meio político, quer no meio empresarial, se enredaram no esquema de corrupção estabelecido nas estatais para sustentar o projeto de poder do Partido dos Trabalhadores, através de seus aliados. Um projeto de poder com a mais troglodita inspiração de esquerda, associado à rede do “socialismo do século XXI” dos partidos e movimentos bolivarianos ligados ao Foro de São Paulo, mas que não atingiria seu intento se a cultura política nacional não estivesse tão desvitalizada nas suas alas liberais e conservadoras, e se não houvesse partidos fisiológicos, como o PMDB, que parasitaram esse projeto para obter vantagens particulares.
Nesse complexo caldeirão, em que o desastre econômico cada vez mais galopante, com direito a rebaixamento do país em avaliação de agências internacionais de classificação de risco de investimentos, empurrou uma frouxa oposição a se lançar, com muita demora e pouca eficiência, na luta pelo impeachment da presidente, e também levou grandes parcelas do povo brasileiro a produzir as três maiores manifestações da história do Brasil; em que um personagem saído desse mesmo esquema de poder, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, deteve sobre si as atenções ao concentrar o poder inicial sobre os pedidos de impeachment e monopolizar as críticas de uma imprensa generosa com o PT, mas implacável com quem se insurge contra ele – mesmo que apenas por interesses pessoais –, ao receber pesadas denúncias; nessa bagunça, ainda tentamos juntar os cacos da tragédia do 26 de outubro de 2014. Justiça seja feita, que também é a tragédia de 2010, a de 2006 e a de 2002.
Entre alentos e desalentos, idas e vindas, oscilações dos personagens que desenvolveram esse drama tupiniquim, estamos em compasso de espera. A ressaca imediata depois do delírio já passou e agora caímos em uma dolorosíssima realidade. Ao mesmo tempo, nunca se falou tanto sobre ideias que andaram por muitas décadas submersas na atmosfera nacional. Ao mesmo tempo, a ira do país contra seus governantes nefastos nunca esteve tão viva. Não encontra, ainda, grande respaldo no funcionamento das instituições e na sua dinâmica interna, visto que acabamos de presenciar insucessos deprimentes, como o resultado da CPI da Petrobras: pizza.
Ao contrário, ainda falando em Foro de São Paulo e em socialismo na América Latina, por incrível que pareça, pode ser – PODE SER; a experiência recente nos mostra que devemos sempre manter a cautela – que um dos nossos vizinhos, que mergulhou nessa direção destrutiva com ainda mais velocidade e em estágio ainda mais adiantado do que nós, esteja mais perto de sair desse buraco vermelho: a Argentina. Nossos hermanos, rivais no futebol, estão, porém, como todos os latino-americanos, ao nosso lado na dor que todos dividimos. No caso deles, o partido no governo, o Partido Justicialista, não é membro oficialmente do Foro de São Paulo, mas é um aliado categórico e evidente do movimento.
A dinastia Kirchner, representada pela presidente Cristina, se vincula ao lulopetismo, a Evo Morales, ao chavismo venezuelano e aos demais países vitimados por essa praga anacrônica, tendo a Cuba dos Castro por fetiche central, como coluna mestra desse predomínio de uma esquerda autoritária e populista no poder continental. Como grande parte das forças políticas argentinas, é também em boa medida herdeira de um populismo mais antigo, o populismo clássico do ditador Perón, que permanece como legado maldito para um país que, como o Brasil, e em alguns aspectos até bem mais, muito prometia. Não conseguindo sucesso em suas manobras para permanecer no poder diretamente, Kirchner e sua turma colocaram na disputa, pela situação, um candidato, Daniel Scioli, que, de acordo com a opinião da maioria dos analistas políticas, tem uma postura mais conciliadora e centrista que a deles, mas garantiria a manutenção, nas suas palavras, dos “programas sociais” – e, em geral, sabemos muito bem o que isso significa. Scioli estava dado como favorito. Porém, os argentinos fizeram história.
Chegando a liderar durante parte da apuração – em uma eleição, aliás, feita com cédulas de papel, é bom destacar -, terminando em segundo lugar por uma diferença risível de 36,6,% a 34,5% dos votos, o oposicionista Maurício Macri, ex-presidente do clube de futebol Boca Juniors, do partido Proposta Republicana, conseguiu levar, pela primeira vez, as eleições para o segundo turno. Segundo excelente reportagem do El País, para surpresa de todos, ele se torna agora “o favorito para assumir a presidência argentina, o que seria uma guinada radical após 12 anos de kirchnerismo”. Isso, entre outros motivos, porque os kirchneristas perderam a província de Buenos Aires. O El País lembra que Kirchner venceu sua reeleição em 2011 com 54 % dos votos. Diz a matéria que, desde então, “se multiplicaram os casos de corrupção, e até o vice-presidente da Argentina, Amado Boudou, foi processado em dois casos por vários crimes”; a popularidade ainda mantida pela presidente se deveria “a uma grande injeção de liquidez e de gastos públicos este ano”, ilusão econômica que nós sabemos melhor do que ninguém no que vai dar. A divisão no país aumentou, assim como no Brasil está claro que a polarização política aumentou – embora haja fortes indicações de que por aqui a repulsa ao petismo, ou pelo menos à figura de Dilma, já não está parelha com sua aprovação, mas sim a supera amplamente.
Nesse cenário, o terceiro colocado da eleição argentina, um peronista dissidente, Sérgio Massa, tomou para si 21,1% dos votos. Por ele ser um esquerdista similar aos Kirchner, isso pode gerar alguma preocupação quanto ao segundo turno. Por outro lado, o El País registra que Massa confirmou ou até melhorou os resultados das últimas pesquisas, o que prova que “Macri roubou votos de Scioli e obteve todos os votos novos que se incorporaram depois das primárias”, o que é grave para as pretensões de perpetuação de poder do kirchnerismo. Resumindo: há grandes chances de Macri estar na crista da onda para assumir o governo do país.
O que isso tem de tão bom para nós? Para começar, repetimos, a casta do Foro de São Paulo perde seu domínio imediato sobre o Executivo da Argentina, e o país tende a modificar a sua política externa. O bem que esperávamos conseguir com a ascensão de Aécio Neves e dos tucanos – que, conquanto sejam sociais democratas e não liberais ou conservadores, tenderiam a uma postura mais moderada de não-alinhamento com a escória regional e internacional e a uma maior abertura de perspectivas para os grandes mercados – se realizaria na Argentina com Macri. E o mais importante: o discurso do oposicionista argentino é muito mais acentuadamente liberal. Ele defende com clareza as privatizações, a contenção do intervencionismo, a retração do Estado. É um político que parece ter visão administrativa moderna, contando a seu favor a experiência de gestão.
Será que Macri decretará o fim da era kirchnerista na Argentina e com isso, antes do Brasil, em que acreditávamos que isso deveria ocorrer antes, promoverá o primeiro golpe mais duro no bloco esquerdista doentio latino-americano? É ficar de olho para constatar se os argentinos terão motivos para comemorar, e com eles todos nós, ou se, como fizemos, “encherão a cara” novamente e mergulharão a si mesmos – e novamente, todos nós, com eles – em outra ressaca.