Acabo de ler Um país chamado Favela, de Renato Meirelles e Celso Athayde, que alega ser “a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira”. De fato, foram milhares de entrevistados em mais de 60 favelas, oferecendo um retrato bem realista do que pensa o povo dessas comunidades em relação a vários pontos.
Os autores pretendem evitar tanto uma glamourização das favelas, comum na esquerda, como um preconceito supostamente atribuído à direita conservadora. Em minha opinião, o livro tem coisas interessantes, mas peca nessa aspecto: não conseguiu deixar de lado certo ranço esquerdista em sua análise. Explico minhas razões abaixo, mas bastaria dizer que chamam Dilma de “presidenta”.
Na apresentação que faz do livro, o sociólogo Luiz Eduardo Soares tenta justamente resumir o que seria uma visão realista das favelas, evitando ambos os extremos da esquerda e da direita:
Em síntese, para as elites e as camadas médias brancas, e, não raro, para os governantes, favela foi e tem sido, em um século de história, o lugar do “Outro”. Curiosamente, não apenas a encarnação da alteridade nefasta, diabólica, que caberia destruir ou exorcizar, mas também redentora, iluminada, cujo destino histórico consagraria a libertação do país, instaurando um tempo de igualdade e justiça.
[…]
Duas expectativas opostas, cultural e politicamente poderosas: o povo da favela vai descer para salvar o Brasil e promover a revolução desejada – supunha-se, sonhava-se ou temia-se. Ou: a favela vai descer para o asfalto e tocar o terror. Nessa figura sombria da paranoia coletiva, talvez mais do que em outro lugar, o racismo instilou seu veneno repulsivo e letal.
Analisar o dia a dia, o cotidiano dos favelados, o que eles pensam e desejam, desprovido de tais preconceitos extremos, parece um exercício salutar. Evitar o elitismo arrogante de um lado e o populismo demagógico do outro, eis o desafio. Rejeitar a visão idealista romântica dos pobres, e também a que os joga todos no mesmo saco de “favelados” e “invisíveis”: esse é o objetivo.
Afinal, estamos falando de seres humanos com suas complexidades, vivendo em um local que pode ser diferente em vários aspectos, peculiar, exótico até, mas nem por isso deixa de ser uma comunidade inserida no contexto nacional, com defeitos e qualidades – mais defeitos que qualidades, em minha visão “conservadora”, da qual os autores discordam.
Mas, como já adiantei, não acho que os autores foram muito bem-sucididos em tal objetivo louvável de isenção. Logo nas apresentações vem à tona o viés mais esquerdista. O rapper MV Bill, por exemplo, acha que o tráfico de drogas surge para atender a demanda (claro), e que se instala a “(des)ordem capitalista”, pois a grana é que manda. O tráfico seria, então, apenas mais uma alternativa para se ter o que comer, e a violência seria resultado da “desigualdade” e da “exploração”.
A prova definitiva de que há esse viés de esquerda está na introdução que Preto Zezé, fundador da Cufa, fez do livro. Ele até condena uma autonomeada “esquerda” que “vulgariza o acesso das camadas mais pobres ao universo do consumo”, pois esses críticos enxergam os avanços nas favelas como parte da “alienação” e do “paternalismo dominador”. Mas logo depois solta verdadeiras pérolas marxistas:
Neste país, parcela importante da elite incomoda-se com a presença das massas, antes excluídas, no mercado das compras. Mesmo que lentas e ainda limitadas, essas mudanças movem as placas tectônicas da sociedade de classes, apoiada por uma modalidade de exploração capitalista que se sustenta sobre mais de trezentos anos de trabalho escravo.
[…]
O choque derivado da mudança está expresso na repulsa de certos setores sociais pelos pobres que viajam de avião, pelos negros que ingressam na universidade a partir do sistema de cotas, pelas empregadas que conquistam direitos trabalhistas, pelos proletários que adquirem veículos automotores e até pelas famílias que superam a fome por causa do programa Bolsa Família.
Isso sim, é uma visão preconceituosa! Estou para conhecer essa tal elite. O que sei que muitos condenam, inclusive eu, é a falta de educação em ambientes coletivos, o que nem sempre tem ligação com a conta bancária. No caso dos “rolezinhos”, que os autores defendem, foi claramente isso que gerou tanta revolta da “elite”.
Condenam a segregação do povo miscigenado com base no critério racial, o que impede a meritocracia e fomenta o racismo que pretende combater. Ou também uma lei trabalhista engessada que acaba jogando para a informalidade milhões de brasileiros. Ou ainda esmolas estatais sem estratégia de saída que mais parecem voto de cabresto, como fica claro nessa eleição. Mas Preto Zezé, que escuta os conselhos de João Pedro Stédile, do MST, enxerga o mundo pelas lentes marxistas, e acha que tudo é luta de classes.
O que o livro mostra é que houve grande avanço econômico nas favelas nos últimos anos, e que o principal pilar disso foi justamente a maior formalização de empregos. O salário médio do favelado cresceu mais do que no Brasil em geral, e essa sensação de melhoria de vida é capturada pelas pesquisas de opinião. A ascensão social é um fato.
Curiosamente, poucas pessoas atribuem esse avanço às políticas públicas ou aos empregadores. Para 14%, a família é a principal responsável pela evolução. Deus é citado por 40%. Segundo 42%, a ascensão é resultado do próprio esforço. Apenas 1% lembrou do governo. Vejam que interessante! O governo não é encarado como a locomotiva do progresso por essas comunidades.
Naturalmente, ninguém cita a verdadeira causa da “bonança”: o crescimento chinês aliado às políticas monetárias expansionistas dos países desenvolvidos. Seria cobrar demais desses cidadãos tamanha compreensão do funcionamento econômico global, algo que nem os doutores da Unicamp compreenderam ainda.
Mas, se os próprios moradores não dão crédito ao governo do PT, o mesmo não ocorre com os autores. Lula recebe muitos afagos no livro, seus programas sociais são enaltecidos ao extremo, e seus críticos que falavam de risco do modelo cubano são ridicularizados. Eles aderem totalmente à falácia do próprio Lula, de que os estímulos estatais fazem a “roda da economia girar”:
Se vale um exercício didático criativo, a família de José, segurada do plano governamental, comprou mais biscoitos na padaria de João. Já João elevou a quantidade de itens solicitados aos fornecedores, obrigados a aumentar a produção. Nesse processo, a demanda por novas máquinas ativou outros setores industriais, estimulados a contratar novos colaboradores. Esses ingressantes no mercado de trabalho formal também foram incluídos no mundo do consumo, multiplicando as vendas de padarias, de lojas de vestuário e até de concessionárias de automóveis. Quando da edição deste livro, cada `real investido no programa adicionava 1,78 real ao Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
Ah, como tudo parece simples! Basta o governo distribuir recursos escassos para os pobres que tudo ficará bem. É o rabo que balança o cachorro: é só estimular a demanda que a oferta vem atrás. Só não dá para entender por que ainda existem países pobres então. Afinal, era só o governo “investir” trilhões, e para cada um, a economia cresceria quase dois!
É óbvio que a realidade não é tão simples – nem tão fácil. Cada um real que o governo “investe” em transferência de recursos, há um real a menos para investimento produtivo. Não existe almoço grátis. É preciso lembrar daquilo que não se vê de imediato. Quem paga a conta? Isso os autores ignoram completamente, sacrificando sua análise da situação nas favelas, cujo avanço se mostra, hoje, insustentável sob o atual modelo de estímulo à demanda.
Os autores acham que a melhoria na condição de vida nas favelas depende da atividade empreendedora também. Nesse aspecto, estamos juntos. Mas em vez de pregar o rigoroso império das leis para garantir contratos e a segurança jurídica e física dos investidores, eles preferem apelar para uma visão que me parece romântica. Elogiam o “jeitinho brasileiro” tão presente nas comunidades, e a “economia social”, mais solidária, que “mesmo num país capitalista”, “constitui laços de cooperação e inspira atos de generosidade”.
Será que eles acham que não há cooperação no “asfalto capitalista”? O que seriam os mercados então, com produtos para todo gosto e bolso? Acreditar que a “generosidade” é bom substituto da economia de mercado capitalista é não entender Adam Smith e sua “mão invisível”. Há mais generosidade do que tantos produtores tendo de competir entre si só para satisfazer nossas demandas?
Para os autores, a “economia, de verdade, faz-se a partir de tramas que promovem benefício compartilhado e felicidade somada. Quando o ganho é unilateral, trata-se de simples e perversa exploração”, aquilo que, segundo sua ótica, ocorre no capitalismo. Mas com trocas voluntárias em ambiente de livre concorrência, o que mais temos é justamente o caso de ganha/ganha. Afinal, por que trocar voluntariamente se não vou me beneficiar?
Algo interessante que emerge das pesquisas do livro é a comprovação da velha máxima de Joãozinho Trinta, de que quem gosta de pobreza é intelectual, já que o pobre gosta é de luxo. No fim de 2013, 85% dos favelados carregavam no bolso ou na bolsa um aparelho de telefone celular, sendo que 22% eram smartphones. Viva a privatização da Telebrás!
No mesmo ano, 16% já tinha viajado de avião. O consumo de marcas conhecidas é importante para definir o status na favela. Televisão de tela plana virou febre nesses locais. O favelado não quer fazer uma revolução ou derrubar o “sistema”, mas sim melhorar de vida e ter acesso aos bens e serviços que as elites também têm. Se ao menos o governo com seus pesados impostos atrapalhasse menos…
O grande problema é o cultural, em minha opinião. Para começo de conversa, as mulheres chefiam quase 40% dos lares, sendo que na metade deles (20% do total) criam sozinhas um ou mais herdeiros. Mãe solteira pode ter seu charme quando se trata de Jane Fonda ou Madonna, mas nas favelas não é nada legal.
Quem quiser compreender melhor os impactos disso na vida das crianças, recomendo os livros de Theodore Dalrymple, especialmente Life at the Bottom. E vale lembrar que as estatísticas não são nada favoráveis para filhos que crescem sem uma figura paterna em casa. No caso das favelas, é comum a troca frequente de “padrastos”, o que não ajuda em nada na formação dos rebentos.
Soltos em um ambiente repleto de traficantes, em que o funk com suas letras de baixo calão são adorados (curiosamente, o estilo preferido nas favelas é o gospel, mostrando que o papel da religião, em especial a evangélica, pode ser um freio às alternativas mais “pecaminosas”), esses jovens não desfrutam de referências muito saudáveis.
O “funk ostentação” surgiu para dar vazão ao desejo de muitos jovens das favelas de mergulhar no mundo do consumo. “Nesse sentido”, escrevem os autores, “mais do que esbanjar, a ideia seria mostrar que os membros dos estratos sociais inferiores são capazes de obter bens antes reservados à burguesia”. Vendo o resultado, sou forçado a perguntar: será que o tiro não saiu pela culatra?
O preconceito racial é bastante alardeado pela esquerda, mas não é bem o que identificamos nas pesquisas. Nas comunidades, um dentre três moradores já se sentiu discriminado. Entre os que tiveram essa percepção, 32% declararam ter sofrido em razão da raça ou da cor da pele. Para 30%, a situação de constrangimento deveu-se ao fato de morar na favela.
Ou seja, praticamente a mesma quantidade de gente se diz vítima de preconceito por raça ou por morar na favela, mostrando que seria um preconceito social tanto quanto racial. E se estamos falando de 32% dos um terço que se sentiu discriminado, estamos falando então em algo como 10% do total dos moradores de favela vítimas de preconceito racial, o que não parece suficiente para colocar o Brasil como um pais racista, como pretendem os defensores das cotas.
Sobre a questão da segurança, a pesquisa do Data Favela mostrou que 75% dos moradores de favelas eram favoráveis à pacificação pela polícia (55% eram totalmente a favor e 20%, parcialmente a favor). Isso deve ser mais do que no Leblon! Se depender de certos artistas e “intelectuais”, a polícia fica de fora das comunidades, como fez Brizola (com nefastas consequências). Mas os favelados querem as UPPs.
Já os autores, novamente, deixam transparecer certo viés de esquerda. Para eles, a polícia é tratada quase como inimiga, que precisaria ser desmilitarizada inclusive. Seu papel, quando recupera suas origens, seria o de “caçar os negros fugidos e zelar pela manutenção do sistema escravagista”. Tal afirmação se assemelha aos ataques de “fascista” que a polícia recebe dos “intelectuais” socialistas.
Ambos afirmam, ainda, que o Brasil não é o país da impunidade, pois temos “uma multidão de 550 mil presos, número que compõe a quarta população carcerária do mundo”. Ora, será que os autores ignoram que o Brasil tem a sexta maior população mundial? Falar apenas em termos absolutos soa má-fé. No mais, o que importa é a quantidade de crimes. Se temos mais crimes, temos de ter mais presos mesmo.
Como rejeitar o rótulo de “país da impunidade” quando sabemos que quase 60 mil pessoas morrem assassinadas todo ano, e que a maior parte dos crimes permanece sem punição? “Dos presos brasileiros, somente 12% foram condenados por crimes letais”, dizem. E acham pouco? E quantos matam e não são condenados? Os que foram presos por tráfico ou crimes contra o patrimônio não merecem punição severa? Apontar uma arma para a cabeça de um inocente e roubar seu carro é algo irrelevante ou trivial? Só para quem nunca foi vítima de tamanha agressão!
Por fim, e deixando claro o viés favorável ao estilo de vida das favelas, os autores concluem:
Se a favela necessita urgentemente das facilidades e dos engenhos do asfalto, não nos parece incorreto afirmar que o asfalto, muitas vezes afogado em interesses mesquinhos, precisa importar saberes e valores da favela. Se o país dos brasileiros pretende ser mais justo e melhor, convém valorizar o lugar da favela, convém emular o espírito de sua arquitetura.
Sinceramente, Regina Casé e Luciano Huck podem aplaudir tal ponto de vista de suas confortáveis casas no asfalto, mas não acho que as favelas em si devam ser valorizadas, muito menos sua arquitetura emulada. Tenho para mim que existem vários outros exemplos de arquitetura que merecem mais reconhecimento e deveriam ser copiados ou usados como inspiração para o progresso de nosso país. Acho que muitos favelados concordariam comigo e adorariam trocar de lugar com Regina Casé e Luciano Huck.
Rodrigo Constantino
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