Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
O bilionário húngaro George Soros, nascido em Budapeste em 12 de agosto de 1930, é conhecido pela sua posição destacada como investidor global, mas sua notoriedade nas querelas políticas se deve à Open Society Foundations, organização por ele fundada, cujo nome se inspira na “sociedade aberta” conceituada pelo filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994).
Essa é a teoria. Na prática, Soros é mencionado pelo nome por lideranças europeias revoltadas com o que consideram o financiamento direto da supressão das soberanias nacionais e da cultura de seus países, patrocinando um suposto “cosmopolitismo liberal” que concede poder a esferas supranacionais e dilui arbitrariamente o senso de fronteiras. É rejeitado, no Brasil e no mundo, por setores à direita que repelem as causas “de esquerda” ou “progressistas” a favor das quais irriga os países alheios de dinheiro.
Um homem que reconhecidamente impacta o globo, mexe com o mundo político e intelectual e é figura carimbada em todas as teorias conspiratórias contemporâneas – quer as falsas, quer as verdadeiras. Qual será a agenda sustentada por ele? O que será que está por trás da “sociedade aberta” que ele quer alastrar pelo mundo, tal como ele a entende?
Em outubro de 2009, Soros proferiu várias palestras na Central European University, em sua terra natal, expondo um panorama de suas ideias sobre economia e política. O conteúdo foi organizado em um livro, Uma aula com George Soros, editado no Brasil pela Campus no ano seguinte. O material é muito recomendável a quem deseje entender o que embasa a tessitura das ideias desse personagem emblemático das tramas internacionais.
Reflexividade e mercado financeiro
Soros abre seu livro com uma exposição perfeitamente aceitável do pensamento de Popper de que, perante a incerteza humana, a forma mais atraente de organização da sociedade é a da “sociedade aberta, na qual as pessoas sejam livres para defender opiniões divergentes e o Estado de Direito conceda a pessoas com diferentes pontos de vista e interesses uma convivência pacífica”. Dessa premissa, porém, ele deduz dois conceitos que consolidam o que chama de “minha filosofia” ou “meu esquema conceitual”: a falibilidade e a reflexividade.
A falibilidade postula que a visão de mundo de participantes pensantes em qualquer situação será sempre parcial e distorcida. A reflexividade, por sua vez, postula que essa visão distorcida pode influenciar “a situação a que ela diz respeito, uma vez que um ponto de vista falseado induz a uma ação imprópria”. A incerteza humana, decorrente desses dois princípios, faz com que “os temas abordados pelas ciências naturais e pelas sociais” sejam “fundamentalmente diferentes – daí a necessidade de desenvolverem métodos diferentes e serem confinadas a critérios diferentes”.
A imitação promovida por cientistas sociais da dinâmica das ciências naturais “conduz inevitavelmente à distorção dos fenômenos humanos e sociais”. As teorias nas ciências sociais, particularmente, seriam vítimas da reflexividade – o que significa que as distorções aqui cometidas podem influenciar a realidade, tal como teriam feito o Marxismo e o “fundamentalismo de mercado”. Em longa explanação, Soros pretende aplicar essa teoria à sua especialidade: o mercado financeiro. Ele explica a formação das “bolhas” – circunstâncias em que fica afetada a previsibilidade do mercado – como descaminhos tomados pelo mercado a partir das distorções provocadas na interpretação da sua dinâmica pelos agentes nele envolvidos, justamente por conta da ação da reflexividade em suas avaliações. O mercado, para Soros, não seria de fato “eficiente” – o que justifica a necessidade de intervenções e regulações para retificá-lo.
Competiria às “autoridades financeiras” o papel de impedir que “bolhas” cresçam demais. Para isso, devem ter o controle da disponibilidade de crédito e do aporte de dinheiro. Com esse edifício teórico, Soros apresenta sua concepção de que as relações internacionais do mercado têm de estar encimadas por certas regras mais gerais, um tanto além do que liberais mais caracterizados tolerariam.
Sociedade aberta, valores de mercado e capitalismo
Voltando a atenção à política, Soros retoma Popper e diz que, depois de sua indignação com o que considera violações dos direitos humanos no governo Bush, entendeu que, embora o filósofo estivesse certo quanto a pensar que a democracia institucional viabiliza “a reforma sem violência”, o ato de pensar nem sempre visa a “uma melhor compreensão da realidade”, também existindo o que ele chama de “função manipulativa”. Eis a brilhante (?) conclusão de Soros: as instituições não bastam, pois a manipulação e o engodo têm força dentro da “sociedade aberta”, abrindo-lhe feridas que demandam conserto.
“Na luta política para manipular a realidade, o compromisso de fidelidade à verdade tornou-se uma desvantagem”, assegura, exemplificando a afirmação com a ideia de que o governo Bush – os alvos prediletos são os Republicanos; Soros detesta Reagan, como detesta Bush – “teve à sua disposição uma poderosa máquina de propaganda direitista”. Os “comentaristas populistas” – que, para Soros, são sempre os conservadores ou Republicanos, nunca os “liberals”, isto é, a esquerda americana – estão sempre falseando as informações e, com isso, manipulando a democracia e arranhando a sociedade aberta. A imprensa que inventava mundos e fundos para impedir Donald Trump de se eleger, para ele, como vimos recentemente, não foi problema…
A falibilidade e a reflexividade corrigiriam o equívoco iluminista da razão perfeita, que na realidade é distorcida, e o equívoco pós-moderno de negar todo o conhecimento objetivo (sim, ao menos Soros não acolhe positivamente as ideias do pós-modernismo). Elas demonstrariam que “o valor instrumental da democracia é condicionado ao compromisso do eleitorado com a busca da verdade, e, nesse particular, o desempenho atual da democracia americana não está à altura de suas façanhas passadas”.
É curioso, no entanto, que o argumento de Soros é fluido e pode ser, também ele, manipulado; se julgarmos que determinada medida governamental é ruim, poderemos dizer, então, que a “reflexividade” adulterou a percepção racional dos fatos; se concordarmos – principalmente se a medida corresponder à agenda do Partido Democrata, apoiado por Soros -, então, o melhor a fazer será silenciar.
Desse dilema, Soros parte ao que considera o conflito entre o capitalismo e a sociedade aberta. “Os Estados Unidos são uma sociedade aberta, democrática, baseada na liberdade do indivíduo, que é protegido pelo Estado de Direito, tal como define a Constituição”; porém, diz ele, “a economia americana baseia-se no mecanismo de mercado”, conflituosamente afetado pelo “fundamentalismo de mercado” reaganista. A “amoralidade” do mercado teria penetrado em áreas que não lhe são próprias e subvertido a “moral pública”. Esse seria o seu pecado original, baseado na ideia absurda, para Soros, de que as pessoas sabem o que é seu interesse pessoal (!).
O húngaro alega que não quer, com isso, sustentar que o extremo intervencionismo estatal seja muito melhor; contudo, para ele, parece claro que o “fundamentalismo de mercado” é o alvo número um que deseja combater, esse sofisma fanático cujas teias sinistras nós vemos devastando a saúde financeira de muitos países – só que não. Seus interesses, os interesses “do capital” – sim, o “homem do povo” Soros às vezes fala igual à Luciana Genro – ameaçam a sociedade aberta, desmantelando mecanismos regulatórios e pervertendo financeiramente a representação política.
Mas o que faz o próprio Soros, financiando as políticas que interessam à sua agenda? Será possível que ele não enxergue a incoerência? Todo esse capítulo do opúsculo de Soros se resume a considerar uma intromissão indevida de lobistas endinheirados toda e qualquer defesa de causas que não agradam às suas teses pessoais, mas uma “filantropia política” em prol da “sociedade aberta” tudo aquilo que, por vias muito similares, senão idênticas, lhe apetece.
A agenda de Soros
Toda essa bela cartilha de teorias, algumas engenhosas e elegantes, mas apegadas a um bom mocismo meramente fictício que se denuncia a um olhar mais atento, tinha por objetivo o último texto contido no livro. É aqui que Soros torna mais concreto o seu pensamento político, voltando-se ao mundo de hoje.
Do ponto de vista econômico, as teorias de Soros permitiriam concluir que o “sistema financeiro internacional, da maneira como foi reconstruído após a Segunda Guerra Mundial, não criou um campo de atuação uniforme, mas concebido de modo desigual”. As instituições financeiras internacionais são controladas pelos países ricos, com “uma parcela desproporcional de votos”. Teríamos passado de “um sistema quase totalmente regulado para outro quase totalmente desregulado”, sob o tacão dos fundamentalistas de mercado dos EUA. A “globalização dos mercados financeiros” foi um projeto radical que autoriza ao capital financeiro “deslocar-se livremente pelo mundo”, dificultando sua taxação e regulamentação. Isso, segundo Soros, levou os governos a se sujeitar às exigências do capital internacional. O de que efetivamente precisamos, para ele, é de “regulamentos globais”, de âmbito internacional, para que a arbitragem regulatória localista não perturbe o seu caráter global.
“O sistema multilateral vigente”, o “capitalismo internacional”, teria demonstrado suas falhas intrínsecas, depois de um período em que foi temporariamente salvo pelas ideias maravilhosas de Lorde Keynes (1883-1946) – o teórico das intervenções “anticíclicas” na economia, rival de Hayek. O capitalismo internacional se provou “intrinsecamente instável, por falta de regulamentação adequada – e também altamente injusto, favorecendo aqueles que têm em detrimento dos que não têm”.
O grande desafio que lhe é feito, porém, é o do sistema chinês, baseado no capitalismo de Estado, que, no entanto, convive com uma sociedade ditatorial – o que Soros praticamente se obriga a reconhecer, porque passa quase todo o capítulo encantado com os chineses, quase que a saudar seu advento como contraponto aos malignos americanos.
O que Soros quer é que triunfe uma terceira alternativa, a ser pactuada mediante uma nova Conferência de Bretton Woods, reformulando todo o pacto financeiro internacional. O novo pacto reformularia todas as regras de “controle das movimentações de capital”, eliminando a “liberdade total” concedida ao capital financeiro.
Um “paragrafozinho”, porém, insinua a verdadeira extensão de seu projeto: “é possível que a reorganização da ordem mundial vigente tenha de se estender para além do sistema financeiro, se quisermos fazer algum progresso na solução de questões como o aquecimento global e a proliferação de armas nucleares. É possível que seja necessário o envolvimento da ONU, especialmente no que respeita ao ingresso em seu Conselho de Segurança”. Traduzindo: Soros acredita que suas ideias maravilhosas sobre como deve ser o mundo, como devem ser as relações econômicas e como devem ser as instituições políticas, precisam ser tratadas sob o tacão de uma grande padronização global, de um poder maior para esferas amplas e globais que nos ensinem, a nós, mentes atrasadas, o caminho para a luz.
Só que Soros tem um problemão para que sua agenda triunfe: os Estados nacionais. “A fonte da autoridade é sempre o Estado soberano” e com isso, “o sistema financeiro de cada país está sendo sustentado e mantido pelos próprios governos”. O Estado nacional, a cultura nacional, a independência nacional, a identidade nacional, enfim, tudo que configure o âmbito nacional como uma realidade geopolítica, é, mal disfarçadamente, o grande problema para Soros.
O texto até tenta sutilizar e embelezar a ideia, mas a plataforma está bem clara, e guarda correspondência com os dramas que a União Europeia, particularmente, vive hoje. Somente idiotas úteis de uma esquerda arcaica e nacionalista podem ironizar nossas críticas e dizer que Soros representa o “capitalismo internacional neoliberal” que tanto combate.
O cerne de sua construção filosófica é um só, e muito claro: financiar tudo que possa flexibilizar as soberanias nacionais e fortalecer instituições internacionais que vão corrigir, não apenas os problemas da circulação financeira, como também retificar os rumos do mundo. É uma manifestação moderna de algumas teses de revolução gradual que remontam arquetipicamente ao fabianismo de H.G. Wells (1866-1946), em seu triste clássico A Conspiração Aberta. Acredito no patriotismo como um necessário remédio estético e cultural a esse gênero de intervencionismo nocivo que, disfarçado de cosmopolitismo saudável, é um projeto ideológico de redesenho da realidade – cujas consequências já se começam a sentir.
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