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Uma ilha de beleza em meio a um oceano de vulgaridade

“A beleza salvará o mundo”, diz Gregory Wolf em livro homônimo, cujo subtítulo é “recuperando o humano em uma era ideológica”. Roger Scruton, por outro lado, é autor de livros sobre a beleza, de um documentário imperdível chamado “Why Beauty Matters”, e até mesmo de duas sinfonias (quem ainda compõe sinfonias?!).

A visão conservadora está bastante ligada à ideia de preservar ilhas de beleza em meio a um oceano de vulgaridades. É a meta de manter a tocha da civilização acesa, para que ela nunca se apague.

Um dos belos exemplos está na série “Downton Abbey”. A delicadeza, os diálogos, a fotografia, tudo é fascinante. Ela é refinada, elegante, com ótimos diálogos, com a fina ironia inglesa, e com uma clara sensação de que algo se perdeu nesse progresso todo. Cheguei a comentá-la aqui:

O mordomo Carson, desejando que fosse possível parar o curso do tempo para que certas coisas pudessem ser preservadas, é o ícone do conservador reacionário, mas que nem por isso deixa de ser cativante naquele contexto. E suas declarações de amor são simplesmente “fofas”, segundo minha mulher. Não se fazem mais cavalheiros como antigamente, pois não há mais mulheres distintas e elegantes como antigamente…

Em meio a tantas odes ao progresso, acaba sendo interessante assistir a uma ode aos valores tradicionais, aos estilos que mereciam ser conservados, ainda que mudanças fossem – e devessem ser – inevitáveis. Não é preciso ser um reacionário para lamentar certas mudanças, ou para mergulhar em nostalgia com um tempo clássico que já se foi e não mais regressará. Podemos apreciar todos os avanços e, ainda assim, sentir que havia ali, naquele estilo aristocrático, algumas qualidades importantes.

Como, por exemplo, aprender a conter os impulsos, por mais “justos” que possam lhe parecer à primeira vista. Sem “spoiler”, mas é a lição que a jovem empregada Daisy aprende “the hard way”, ao tentar defender seu sogro. O tiro sai pela culatra, pois a impulsiva moça teve muita estamina, e pouca sabedoria. No mundo atual, em que qualquer impulso é tido como nobre porque “autêntico”, essa mensagem fica ainda mais importante: ao contrário dos animais, os seres humanos podem e devem controlar impulsos e apetites, colocando alguma reflexão antes do agir.

E como estava em abstinência de “Downton Abbey”, fiquei feliz ao saber que Jullian Fellowes, seu autor, estava de volta, numa curta série de apenas quatro capítulos, adaptação de uma história de Anthony Trollope, chamada “Dr. Thorne”. Terminei de ver ontem, e fica a mesma sensação, apesar de não ser tão boa quanto a outra. A beleza está lá, a calma, um ritmo diferente dessa velocidade alucinante da era moderna, com estímulos incessantes.

Há momentos em que chega a dar raiva da postura contida do doutor Thorne, personagem de Tom Hollander. Como assim, ele não vai dizer logo o que sabe para a sua sobrinha?! Como é que ele não vai reagir com mais ímpeto ou fúria às ofensas recebidas por sua família? Mas lá está ele, calmo, reservado, absorvendo as informações, aguardando o timing certo para falar, para agir. É uma marca da era vitoriana, de um gentleman.

Não precisamos idealizar o passado, como fazem os saudosistas “reacionários”. “O hábito de culpar o presente e admirar o passado está profundamente arraigado na natureza humana”, disse David Hume. O próprio Trollope é prova de que as hipocrisias e defeitos de seu tempo não passavam despercebidas. A natureza humana, afinal, não muda com o progresso. A ambição, as paixões, o poder do dinheiro, tudo isso estava lá também.

Em seu livro Moral Freedom, Alan Wolfe diz que “toda geração acha a moralidade das gerações anteriores melhor que a sua própria”. Ele usa como exemplo justamente a imagem da era vitoriana, tida hoje por alguns como o ícone da moralidade. Mas o que dizer da sátira do mesmo Trollope, The Way We Live Now, escrita em 1875 para expor uma Inglaterra repleta de jogadores bêbados, financistas corruptos e amantes incompetentes? Basta ver o que Baltasar Gracián escreveu em A arte da prudência:

Muitos valores vieram a parecer antiquados: falar a verdade, manter a palavra. Os bons parecem pertencer aos velhos tempos, embora sejam sempre queridos. Se é que ainda há alguns, são raros, e nunca são imitados. Que triste época esta, quando a virtude é rara e a maldade está no cotidiano.

Isso foi escrito no século XVI! Portanto, saibamos calibrar o pessimismo com o presente e descontar a empolgação com o passado, quase sempre idealizado. Havia muita coisa errada antes, que merecia duras críticas. É até compreensível a revolta contra a sociedade puritana, machista e moralista de tempos mais remotos. O ser humano nunca foi santo, e sua trajetória é marcada por mentiras, guerras, traições.

E isso faz desses bastiões da beleza algo ainda mais importante! É justamente porque a realidade é feia muitas vezes que a arte existe. E como ícone de beleza, ela pode ajudar na travessia por um mundo melhor. Especialmente hoje, creio. Não porque tudo piorou, e sim porque a tecnologia “empoderou” (para usar o termo da moda) os mais vulgares e acelerou o processo, tornando mais raro ainda esse momento de fuga, de recuo, de reflexão e contemplação.

É por isso que as séries de Fellowes são um achado, uma ode à civilização, ao que temos de melhor. E para esse fim de semana, já separei seu livro Belgaravia, “uma história de segredos e escândalos na Londres dos anos 1840”. O passado não era perfeito. Longe disso. Mas a narrativa dessa época pode nos ajudar a resgatar algo que se perdeu, e que faz falta. Num mundo de tanto “som e fúria”, com tanto barulho, funk, poluição visual, é um bálsamo parar para degustar as boas histórias passadas na era vitoriana.

Rodrigo Constantino

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