O título desse texto é uma frase da excelente coluna de Luiz Felipe Pondé na Folha hoje. Ele fala sobre aquilo que seria o denominador comum das principais religiões: a postura de reverência diante do milagre da vida, um agradecimento pelo simples fato de estarmos aqui, o que já é algo um tanto improvável. Gosto desse ponto de vista, e acredito que ele é um divisor de águas entre pessoas maduras e gente mimada e infantil. Os primeiros costumam agradecer pelas coisas que têm, a começar pela vida, enquanto os últimos querem só demandar dos outros.
Sempre me incomodou, mesmo como ateu, essa mania de muitos de só pedir, pedir e pedir ao seu Deus, como se fosse Sua obrigação preocupar-se com as exigências e desejos individuais. Levei um tempinho até descobrir que essa não é a postura ensinada de verdade pelas boas religiões, o que me permitiu resgatar o respeito por elas. Quem fica se colocando no centro do mundo e achando que o propósito divino é atender aos seus caprichos não absorveu nada da religião. E talvez haja total relação entre o declínio da crença religiosa no mundo ocidental e o advento da geração “mimimi”, autocentrada e que só fala em “direitos”.
Das várias coisas importantes que absorvi dos conservadores de boa estirpe nos últimos anos, talvez essa seja a mais relevante: uma preocupação com o legado dos que vieram antes de nós e com a vida dos que ainda nem chegaram. Ou seja, um foco nas gerações passadas e futuras, uma postura de imenso respeito e gratidão para com todos aqueles que existiram e contribuíram de alguma forma para o mundo que herdamos, com costumes, valores e tradições enraizadas que nos permitem viver com mais conforto do que eles, com mais liberdade.
Quando os hedonistas mimados, os “senhorzinhos satisfeitos” de que nos falava Ortega y Gasset quebram esse elo, ignoram os antepassados como se fossem uns idiotas que não sabiam de nada, e passam a viver só para o “aqui e agora” de forma irresponsável, passando a encarar até mesmo filhos como um fardo insuportável que lhes tira tempo e recursos para lazer e desejos pessoais, então a civilização corre sérios perigos. Diz Pondé:
Nossa atitude deveria ser uma de completa reverência diante de tudo isso. Esse tipo de reverência desapareceu do nosso repertório porque somos uns mimados que acham que o universo é “um direito” cósmico. E que todos que transaram em nossa longa cadeia de ancestrais o fizeram “por nossa causa”.
Essa humildade diante da simples existência não é muito distante da ideia de graça no cristianismo (e também no judaísmo e islamismo). Dai que qualquer teólogo competente sabe que toda boa teologia começa agradecendo. Coisa pouco comum hoje em dia. Uma sociedade dominada pela ideia de “direitos” é necessariamente uma sociedade que cultiva a ingratidão. Nada mais distante da espiritualidade semita (das três religiões abraâmicas citadas acima) do que uma teologia que “pede”. A teologia começa agradecendo o fato de respirarmos. Ou, como diria Santo Agostinho (354-430), devemos agradecer pela língua que temos para falar.
Toda espiritualidade séria começa com a consciência do quão improvável é a nossa existência e a de todas as demais coisas à nossa volta. A fina relação entre essa enorme improbabilidade e nossa ínfima existência é que produz o sentimento de milagre, agradecimento e graça.
O filho decente é aquele que reconhece o esforço do pai para lhe proporcionar uma vida melhor. O mimado birrento é aquele que bate o pé no chão e “exige” mais e mais, em nome de seus “direitos”. Como não perceber que vivemos na era dos mimados? Em Os dez mandamentos (+ um), Pondé faz uma bela análise das principais mensagens bíblicas, e diz:
A vida sábia é a que se espelha na desses antepassados que, para evitar caírem na pior forma de idolatria – a idolatria a se próprios -, desenvolveram a consciência moral de que não somos o eixo das virtudes e, assim, podiam ver Deus na intimidade de quem amavam, isto é, seus ancestrais.
[…]
Nesse sentido, a modernidade “científica” é vã porque rompe com o passado que julga não científico e define-se pela autoafirmação contínua de seus próprios valores, sendo ela praticamente impermeável à dúvida cética quanto a si mesma (é o Romantismo, com seu filho mais sombrio, o niilismo, que coloca a grande dúvida à modernidade racionalista e científica).
[…]
Conclui-se, portanto, que a sabedoria israelita entende que não vã é a vida que assume o vazio que nos constitui e, assim, se coloca em franca oposição à “cultura da autoestima” ou da “autoajuda”, marcas do mundo contemporâneo. Esse é um dos sentidos da espiritualidade israelita do deserto – o lugar onde se veem os demônios de cada um.
As religiões podem ser vistas como instrumentos de controle social, de alienação, de embuste, como a esquerda “progressista” as enxerga (sem perceber que tais características caem como uma luva à própria ideologia que professa de forma dogmática). Ou podem ser vistas como algo bem mais refinado, que em vez de oferecer somente conforto a gente fraca, impõe na verdade um fardo àqueles que aceitam com resignação não serem o centro do universo, com o rei na barriga.
Numa era de mimados que só falam em “direitos” e ignoram quaisquer deveres, seja para com os antepassados, seja para com os que nem nasceram ainda, o resgate desses valores religiosos pode ser muito útil, talvez fundamental. Principalmente para muitos “liberais”, que se deixaram levar pelo canto da sereia hedonista e materialista, ignorando que as liberdades individuais dificilmente sobrevivem num vácuo de valores morais. É o que pretendo argumentar com mais profundidade em meu novo curso online, “Civilização em declínio: Salvando o liberalismo dos ‘liberais'”.
Rodrigo Constantino
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