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União Europeia propõe corte de subsídios agrícolas, mas França considera inaceitável

A justificativa soa razoável: um país que não controla sua produção própria de alimentos será refém de outras nações, e isso é perigoso do ponto de vista militar. Não por acaso são sempre os militares que demonstram essa mentalidade protecionista, ao menos para setores “estratégicos” (e nada mais estratégico do que comer, convenhamos). De fato, numa guerra a primeira coisa que os inimigos fazem é tentar obstruir o acesso aos suprimentos importados, asfixiando o adversário.

Mas, em primeiro lugar, ninguém vive como se estivesse numa “guerra infinita”, para usar o filme novo da Marvel como gancho. Em segundo lugar, parece evidente que muitos utilizam tal desculpa para, no fundo, conquistar privilégios indevidos, manter empresas ineficientes, evitar a concorrência, jogando um fardo enorme sobre o ombro dos consumidores e pagadores de impostos. Esse parece certamente o caso do setor agrícola europeu.

Seus subsídios são da ordem das centenas de bilhões por ano. E tentar mudar isso é mexer num vespeiro! Foi o que fez a comissão da União Europeia esta semana, propondo uma redução dos subsídios agrícolas. Conhecida como CAP (Common Agriculture Policy), essa política de subsídios tem sido responsável pelo encarecimento dos alimentos na região, assim como pela manutenção de grupos ineficientes, protegidos por trás do discurso de “setor estratégico”.

O país que mais oferece subsídios é, claro, a França dirigista. E foi a França, naturalmente, que mais chiou com a proposta de mudança, considerando o corte “inaceitável”. A proposta de corte no CAP faz parte de uma visão mais abrangente que pretende reduzir os déficits fiscais desses países, inclusive para se adequar à saída do Reino Unido após o Brexit.

Os agricultores teriam sua “ajuda” reduzida para 365 bilhões de euros anuais de 2021 a 2027, uma queda de “impressionantes” 5% do nível atual. Ainda assim, a choradeira foi grande, a grita também, e esses agricultores, acostumados com os privilégios estatais, não aceitam corte algum. Para o ministro francês, esse corte “drástico” colocaria em risco os fazendeiros, para quem tal ajuda representa uma rede fundamental de segurança. A França, disse, não pode aceitar qualquer redução nos subsídios agrícolas.

Conceder privilégios é sempre fácil, rende votos, financiamento de campanha e até propinas. Os benefícios são concentrados, os custos dispersos. Mas vai retirar o privilégio depois! Parece impossível. Por isso Reagan ironizava que não há nada mais permanente do que uma medida temporária de governo. Uma vez que o presente foi dado, ele é automaticamente incorporado nas estimativas como algo eterno, garantido. E isso ajuda a manter a ineficiência dos produtores.

Basta pensar em nossa indústria automotiva, que fabrica os carros mais caros do mundo, mas ainda precisa ser “protegida” da concorrência global “desleal”. O argumento lá atrás era o da “indústria infante”. Trata-se do infante mais velho do planeta, com mais de 70 anos! Já o nosso setor agrícola, sem molezinha estatal, sem protecionismo, sem muitos subsídios, tornou-se um dos mais competitivos do mundo, grande exportador e salvador da balança comercial há anos.

A concorrência costuma fazer “milagres”, enquanto o protecionismo costuma deixar os produtores acomodados, “investindo” mais em lobby para manter seus privilégios do que em produtividade. Aliás, os grandes privilegiados nunca são os produtores pequenos, sem poder político, e sim os grandes, “amigos do rei”. Há mais de uma década escrevi esse comentário sobre o assunto, ainda atual:

Os países da OCDE pagaram em subsídios agrícolas US$ 268 bilhões em 2006, equivalentes a 27% do total da receita obtida pelo setor rural. Os subsídios europeus continuam sendo os mais generosos. Na União Europeia, representaram 32% da receita do setor rural. Na Noruega e na Islândia, os subsídios chegaram a 60%. Nos Estados Unidos, corresponderam a 11% do total. Na Europa, entre os beneficiados encontram-se a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, e o príncipe Alberto I, de Mônaco. Algumas importantes lições podem ser extraídas desses fatos:

  • O protecionismo significa sempre o privilégio de alguns poucos produtores influentes no meio político à custa de todos os consumidores, que passam a pagar mais caro pelos produtos;
  • Como a lógica econômica não muda na travessia do oceano, aquela medida que é prejudicial para os consumidores europeus também é prejudicial para os brasileiros, ou seja, o protecionismo existente em nosso quintal segue o mesmo princípio: prejudicar consumidores e beneficiar poucos produtores importantes;
  • Os brasileiros têm total direito de reclamar desses subsídios agrícolas, prejudiciais à sua economia, mas devem ter em mente que o Brasil pratica um protecionismo ainda maior, com taxas mais elevadas. Quem duvida, basta checar qual o preço que um carro importado da Coreia chega no Brasil, e comparar com o preço que chega nos Estados Unidos. O mesmo vale para computadores e vários outros produtos importantes;
  • Como fica claro, os europeus recebem três vezes mais subsídios que os americanos, em relação ao faturamento do setor, mostrando que o foco obsessivo da esquerda com o Tio Sam, quando é para condenar subsídios, deriva apenas de uma patologia (ou de interesses obscuros);
  • Por fim, nota-se que somente a esquizofrenia explica o comportamento de uma esquerda que condena os subsídios agrícolas enquanto recebe com honras o socialista francês Bovè, maior ícone desses privilégios concedidos à custa do produtor rural brasileiro. Talvez seja muito exigir coerência de uma esquerda que culpa o embargo americano pela miséria cubana ao mesmo tempo que chama o comércio com americanos de exploração?

Talvez seja interessante comparar essa situação francesa com a da Nova Zelândia, país que passou por grandes mudanças no setor agrícola no passado, permitindo que sua atividade deslanchasse. Escrevi um texto sobre a transformação da Nova Zelândia no passado, e fica claro como o corte dos subsídios agrícolas foi parte importante desses avanços:

As reformas que alteraram o rumo da Nova Zelândia começaram em 1984, paradoxalmente por um governo tido como de centro-esquerda. Como a cor do gato é menos importante do que o fato dele comer ou não o rato, veremos que as medidas tomadas pelo Partido Trabalhista tiveram forte cunho liberal, e por isso foram eficientes na captura do rato. Ocorreram privatizações, a intervenção estatal na economia foi bem reduzida, o welfare na indústria e agricultura foi cortado e ocorreu uma mudança de foco do imposto de renda para consumo. O governo chegou a propor, sem sucesso, um imposto flat de 21%. A economia experimentou um expressivo crescimento, de cerca de 4% ao ano por um longo período. Foi o maior crescimento de emprego entre todos os países da OECD.

Creio ser relevante voltarmos um pouco no tempo. A Nova Zelândia era um dos países mais ricos em termos per capita no começo do século XX. Foi após o governo populista e corporativista de Robert Muldoon que o país viu abrupto declínio de riqueza relativa. Políticas protecionistas e interventoras fizeram com que a Nova Zelândia fosse perdendo rapidamente posições no ranking para países mais liberais. Medidas claramente socialistas, como controle de preços e salários e elevado gasto público para comprar o apoio dos sindicatos, plantaram as sementes do fracasso. Em apenas 10 anos, a partir de 1974, a dívida externa subiu de 11% do PIB para 95%! A inflação estava em dois dígitos. Foi neste contexto que se deu a mudança de trajetória, rumo ao maior liberalismo econômico, que salvou o país.

Os reformadores foram influenciados por pensadores como Mancur Olson, Ronald Coase e James Buchanan. Os subsídios governamentais para indústria e agricultura caíram de 16% dos gastos públicos para apenas 4%. Desde a drástica redução nos subsídios agrícolas, o setor aumentou sua parcela no PIB, e o ganho de produtividade foi espetacular durante anos, acima de 6% ao ano por quase uma década!

A reforma fiscal transformou a Nova Zelândia num dos países com a estrutura mais linear de impostos, e a maior taxa de imposto de renda caiu pela metade, de 66% para 33%. O mercado de trabalho foi liberalizado, e o desemprego caiu bastante. Atualmente, está em torno de 4%. O banco central teve autonomia operacional com mandato explícito para a estabilidade de preços, e a inflação foi controlada. O Ato de Responsabilidade Fiscal passou a exigir que o governo publicasse objetivos de longo prazo para indicadores-chave como gasto público, arrecadação fiscal e endividamento estatal. A Nova Zelândia experimentou oito anos consecutivos de superávit fiscal, uma verdadeira ruptura das décadas de déficit.

Atualmente, a Nova Zelândia ocupa a quinta posição no ranking de liberdade econômica do Heritage Foundation. A participação da agricultura ainda é relevante na produção nacional, e o setor emprega cerca de 10% da mão-de-obra total. Os subsídios agrícolas, entretanto, são os menores entre os países desenvolvidos. A economia é uma das mais desregulamentadas da OECD, e aproximadamente 95% das importações são duty-free. O ambiente econômico é transparente e competitivo, com reduzida burocracia. Como resultado disso tudo, a renda per capita cresceu vários anos seguidos, ultrapassando a marca dos US$20 mil.

Desnecessário dizer que, desde então, a Nova Zelândia só intensificou suas reformas liberais, e com isso progrediu ainda mais. É um dos países que mais se destacam no cenário global, um ícone de sucesso. Tudo graças ao liberalismo. Antes, quando dependia de subsídios agrícolas, a situação era bem diferente. É preciso aprender com os casos de sucesso. Ou, claro, escolher o atraso, como faz todo país que insiste nas receitas estatizantes…

Rodrigo Constantino

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