Louvre: quem diria que só há coisas inúteis nele?| Foto:

Nem só de pão vive o homem. O materialismo utilitarista moderno, que transforma tudo em cálculo monetário, acaba deixando de lado o intangível, o “inútil” que, contudo, mostra-se fundamental para nossas vidas humanas. Vários pensadores enalteceram a “utilidade” desse inútil, ou a necessidade do “supérfluo”, tanto da esquerda como da direita (o caso, por exemplo, de Ortega y Gasset, que já comentei aqui).

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Em A utilidade do inútil: um manifesto, o italiano Nuccio Ordine compila várias dessas defesas intelectuais das artes, da poesia, da literatura, desde Aristoteles até pensadores modernos, passando por Montaigne, Shakespeare, Kant e muitos outros. Seu tom é ácido demais contra o lucro, o mercado, a austeridade. Ordine pensa que o capitalismo é o grande vilão dessa vida mais espiritual, voltada ao belo. Faz uma defesa apaixonada das áreas de humanas nas universidades, lamentando o sucateamento crescente de verbas para se preservar o foco nesse “inútil”.

Mas não é preciso concordar com seu diagnóstico, tampouco com sua receita, para admitir que sua crítica tem um ponto legítimo. Creio, aliás, que esse seja o problema de muito liberal, principalmente da área econômica: a fim de rechaçar, com razão, as propostas estatizantes desses “intelectuais”, recusa-se a sequer escutar suas críticas ao sistema capitalista, muitas vezes válidas.

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Vamos, antes de mais nada, aos maiores erros que vejo no manifesto. Ordine parece projetar que todos são ou deveriam ser como ele, mais contemplativos e menos “executores”, preocupados em admirar o belo em vez de acumular riquezas. Acha, como tantos socialistas, que todos poderiam ser caçadores de dia, pescadores de tarde e filósofos de noite. É uma visão elitista e arrogante do mundo.

Cada um é cada um, com seus interesses diversos, com suas fugas diferentes para as angústias inerentes à condição humana. Não nego que a “fuga” pelas artes seja mais atraente, refinada e talvez superior à “fuga” pelo consumismo, pelo acúmulo de bens, ou coisa do tipo. Mas não somos todos iguais, e é uma forma de autoritarismo querer impor nosso estilo de vida “superior” aos outros.

No mais, há sempre a questão da hipocrisia. Esses “intelectuais” gostam de cuspir no “sistema”, no lucro, mas não costumam dispensar as maravilhas que só o capitalismo pode lhes oferecer. Além disso, manter bibliotecas, orquestras sinfônicas, cursos de línguas clássicas e museus custa dinheiro, que não cai do céu nem brota do solo. Alguém precisa pagar por isso. Deve o trabalhador labutar no campo para o intelectual desfrutar de sua ópera? Também adoraria viver imerso em livros, músicas e obras de arte, mas quem pagaria por isso?

Julgar que a alocação de recursos escassos é equivocada por negligenciar tais áreas é adotar uma visão de mundo, que não necessariamente estará de acordo com a dos demais cidadãos. Condenar a austeridade em si, quando tantos governos europeus estão literalmente quebrados, é fingir que há alternativa, que é possível simplesmente abandonar a aritmética, ou que manter um museu é mais relevante do que manter um hospital. Não é maduro fingir que a escassez não existe.

Feitas essas ressalvas, considero o grande mérito do livro o ataque aos excessos do materialismo, tentando chamar a atenção para coisas que parecem efetivamente mais elevadas. É verdade que devemos tomar cuidado aqui, lembrando do alerta de Joãozinho Trinta: quem gosta de pobreza é intelectual; pobre gosta é de luxo. Todos queremos conforto material, e é fácil falar que não precisa de dinheiro quando se tem.

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Isso não quer dizer que devemos simplesmente ignorar todos os argumentos desses intelectuais. Talvez seu maior defeito seja o monopólio da virtude: defendem coisas boas, importantes, mas acham que o único meio de preservá-las é com a intervenção estatal e o uso de mais recursos públicos. Quando mostramos como as matérias de humanas nas universidades se transformaram em antros de proselitismo ideológico e combate ao capitalismo, e talvez por isso vêm perdendo cada vez mais apoio e prestígio também, eles viram a cara e fogem das críticas.

Eis o ponto-chave: a obsessão das sociedades modernas com PIB, por exemplo, deixa de lado essa questão importante, fundamental até, eu diria, que acaba definindo sua identidade, sua cultura, seus valores. Os alertas que considero válidos vão na linha de lembrar que só enriquecer materialmente não pode ser o único objetivo, já que pode ocorrer um empobrecimento espiritual no processo. Não é preciso ser de esquerda para entender isso: muitos conservadores o fazem.

Em outras palavras: aquele que só pensa em ter, acaba esquecendo da relevância do ser. Não concordo com a premissa rousseauniana do autor, de que são o capitalismo, a propriedade privada e o lucro que causam isso, que afastam as pessoas de uma vida mais voltada para o ser. Acho que isso é culpar bodes expiatórios. E a tentativa de se criar o “novo homem” sob o comunismo se mostrou desastrosa ao extremo.

Vários liberais, como Thomas Sowell e Hayek, escreveram sobre o flerte dos intelectuais com o socialismo. O livro de Ordine demonstra esse perigo: no afã de defender coisas nobres, elevadas, ele acaba direcionando sua metralhadora giratória para o alvo errado, o capitalismo, o lucro, o mercado. Acha que se abandonarmos tais coisas todos irão, de repente, viver suas vidas procurando o sublime. É uma visão romântica demais, e perigosa.

Mas, repito, isso não deve ser sinônimo de jogar fora toda a sua crítica, que é válida. Qual o lugar mais útil de uma casa? A latrina. Mas não podemos viver voltados apenas para isso, para o útil, pois a latrina é também o lugar mais feio da casa. Reconhecer que a busca do belo é crucial em nossas vidas, e que o foco comercial excessivo ajuda a nos afastar dessa busca, é algo que podemos fazer sem cuspir no capitalismo ou abraçar o socialismo.

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Basta citar como exemplo o mercado das “artes” pós-modernas, dominado pela lógica financeira ao extremo, invadido por ricaços de olho apenas na valorização de seus preços investidos ou em modismos, e que acabou deturpando completamente o conceito de arte tradicional, aquela que buscava o transcendental, o sublime, o eterno.

O autor argumenta que o mesmo teria acontecido na educação e na ciência, com o fim da busca desinteressada pelo saber, pelo conhecimento, bom por si mesmo, não somente por ser “útil” em alguma aplicação prática. Ou seja, não podemos abandonar jamais a preocupação com o qualitas, buscando apenas o quantitas. Em tempos em que tudo que importa para alguns parece ser a quantidade de curtidas, isso vem bem a calhar.

“Eu devo estudar a política e a guerra para que meus filhos possam ter liberdade para estudar a matemática e a filosofia. Meus filhos devem estudar matemática e filosofia, geografia, história natural, arquitetura naval, navegação, comércio e agricultura, a fim de dar aos seus filhos o direito de estudar pintura, poesia, música, arquitetura, tapeçaria, e porcelana”. Quem disse isso foi John Adams, um dos “pais fundadores” mais conservadores. 

Focar nas artes é crucial, mas também é preciso sobreviver, pagar as contas, derrotar inimigos. Ou seja, viver no mundo real. O maior perigo que existe não é só, como alega Ordine, os homens abandonarem de vez as artes para só pensar em acumular mais; mas também os artistas e intelectuais ignorarem aquilo que, para começo de conversa, possibilita a contemplação do sublime: o maior conforto material, que só o capitalismo nos garante.

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Quando se vive sem o básico, quando falta até papel higiênico, fica mais difícil contemplar as belas artes e valorizar o ser, em vez do ter. Ou alguém acha que na Venezuela de hoje, destruída pelo socialismo, há espaço para a admiração da beleza natural e das artes humanas?

Rodrigo Constantino