Peço perdão aos leitores com mais bom senso que já perceberam o perigo, mas como tenho visto vários seguidores insistindo no mesmo discurso absurdo, preciso voltar ao tema. A narrativa golpista revolucionária, adotada por ala do próprio bolsonarismo no poder, diz que o Congresso – todo! – tenta boicotar as reformas, e que “o povo”, que está com o presidente, precisa reagir.
Tanto Montesquieu como Tocqueville se contorcem em seus túmulos. Então não há mais divisão de poderes? O Legislativo é todo imprestável, corrupto, podre? Parêntese: isso vale para os dois filhos do presidente? Fecho parêntese. O que essa turma entende por povo? Quem votou nos deputados e senadores? Alienígenas, por acaso?
Um seguidor comentou: “O povo manda, o congresso obedece”. O que será que ele entende por isso? Que povo é esse? E como ele manda exatamente? Indo para as ruas? O povo é só aquele que apoia as manifestações do dia 26? Não é povo quem está contra? A vitória de Bolsonaro deu carta branca ao presidente, por acaso?
É muita ignorância sobre o funcionamento da democracia. Claro, o sujeito pode alegar que a democracia está toda carcomida, podre, mas aí precisa seguir as conclusões lógicas de sua premissa: quer fechar o Congresso na marra? Quer destruir as instituições de vez? Pretende governar até 2022 com o “povo” nas ruas?
Outro seguidor disse: “Democracia é respeito à maioria! A maioria está com o Presidente, pode ter certeza disso!” Posso? Como? Com base em quê? Pesquisas não valem, pelo visto, pois também são corrompidas pelo establishment, certo? Quantas pessoas no dia 26 comprovam que o “povo” está ao lado do presidente?
E vamos admitir, para efeito de reflexão, que a maioria está mesmo com o presidente: isso não é tirania da “maioria”, aquilo que Tocqueville tanto temia? Não é para impedir isso que temos instituições, pesos e contrapesos, divisão de poderes etc?
Não se enganem: o papel de defender esse Congresso ou o “centrão” fisiológico não me atrai, e quem me acusa disso ataca um espantalho numa tática pérfida de debate. Sei que tem muita gente podre ali, sei que muitos querem trocar votos por esquemas escusos. Mas também sei que não é só isso. E sei que a alternativa a essa democracia imperfeita não pode ser um despotismo esclarecido.
Sim, porque no fundo é exatamente isso que os bolsonaristas estão defendendo. Eles não querem seguir suas premissas até às conclusões lógicas, mas estamos aqui para isso. Se o Congresso todo não presta, então será preciso “governar” até 2022 com “povo” nas ruas. E se alguém tiver uma definição para isso que não seja populismo autoritário, por favor me avisa, pois desconheço.
A narrativa sedutora é que Bolsonaro foi eleito e incorpora a “vontade geral”, a honestidade incorruptível e as boas intenções, tendo ao seu lado o “povo”, numa luta contra as instituições corrompidas, inimigas do povo. Trata-se de visão simplista, maniqueísta e perigosa. Acham que Bolsonaro foi eleito não para presidente, mas para imperador absolutista.
Não é porque gosto da maioria das pautas do governo que vou aprovar esses métodos. A forma de fazer importa tanto quanto o que fazer, ao menos para liberais e conservadores. Estamos em boa companhia, a de gigantes como Montesquieu e Tocqueville. Melhor do que Steve Bannon e Olavo de Carvalho, certamente…
PS: Desafio os tomadores de opinião do bolsonarismo a fazerem uma enquete com seu público, perguntando se desejam fechar o Congresso na marra e mandar “um cabo e um soldado” para o STF. Acho que ficariam “surpresos” com o resultado, que derrubaria a máscara institucional do golpismo que estimulam. Mas duvido que tenham coragem de fazer tal enquete. Preferem manter as aparências…
Rodrigo Constantino