Antes de mais nada, sou um profundo admirador de Mario Vargas Llosa, não só do escritor que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, como do pensador político que vem defendendo a democracia liberal contra os riscos totalitários coletivistas há décadas. Vargas Llosa, que já foi comunista na juventude, virou-se contra seus ex-camaradas e passou a combater as utopias e pregar o livre mercado, a democracia representativa e o estado de direito, opondo-se aos típicos populistas de esquerda da América Latina.
Hoje, porém, ele julga que o comunismo é coisa do passado e coloca o nacional-populismo como o “novo inimigo” prioritário para os liberais, citando como exemplos o Brexit, Donald Trump e Le Pen na França. Seu artigo deste fim de semana no Estadão merece ser lido com atenção, pois há sem dúvida pontos legítimos. Contudo, considero que o grande escritor está equivocado e se mostra cada vez mais “liberal” no sentido americano do termo, que foi usurpado pela esquerda “progressista”.
Em primeiro lugar, colocar o Brexit como ícone do nacional-populismo contra a economia de mercado e o livre comércio é ignorar outro lado do fenômeno que tem tudo a ver com o liberalismo clássico: a desconfiança para com a crescente intervenção estatal nos mercados. Sabemos que os britânicos, com toda razão, estavam cansados de Bruxelas com seus “burocratas sem rosto” controlando cada vez mais da economia e cultura inglesas.
Em que pesem alguns argumentos populistas ou nacionalistas na decisão, ela foi essencialmente liberal, e não contra a globalização em si, mas contra o globalismo, uma “globalização” comandada por burocratas supranacionais e uma elite financeira em conluio com esses burocratas. Há como fazer o ponto de o Brexit como expressão de um populismo nacionalista puro e simples, como faz Vargas Llosa, e há como fazer o ponto, ainda mais embasado, em minha opinião, de que foi justamente um grito liberal contra o excesso de intervenção estatal.
O mesmo vale para a eleição de Donald Trump. Já escrevi vários textos e gravei vídeos sobre o assunto, e lamento que tantos liberais não tenham compreendido o fenômeno direito ainda. Claro, respeito suas críticas a Trump, cujo governo deve ficar sob constante vigilância para não descambar efetivamente para um populismo nacionalista. Mas, até agora, há motivos de sobra para que liberais clássicos e conservadores de boa estirpe apoiem Trump, ainda mais levando em conta como o poderoso establishment esquerdista declarou guerra total ao presidente republicano.
Colocar Trump, portanto, como o grande inimigo a ser derrotado pelos liberais clássicos, mais até do que a esquerda “progressista” que claramente está viva e organizada, é um erro grave de análise e de prioridade. É como achar que Jair Bolsonaro, no Brasil, é uma ameaça maior a nós do que o PSOL, o PT e mesmo uma ala do PSDB, que ainda sonha com o welfare state numa versão light do socialismo, e com a completa subversão dos valores morais tradicionais, com efeitos nefastos para a sociedade.
Tenho defendido a tese de que o pêndulo extrapolou demais para a esquerda, e por isso mesmo os liberais clássicos devem se aproximar mais dos conservadores, em busca do resgate de certos valores perdidos e contra essa “marcha das minorias oprimidas”, o “politicamente correto”, a “revolução das vítimas”. Foi o que fez Edmund Burke, um liberal Whig, ao ver a ameaça jacobina: passou a defender mais prudência e se tornou o “pai do conservadorismo” moderno. O liberal deve ser flexível para se adaptar às demandas do seu tempo.
Pois bem: como ver toda a guerra declarada pela poderosa elite esquerdista a Trump e não ficar minimamente sensibilizado por sua coragem e disposição em lutar contra essa turma? Como não aplaudir quando ele prega redução de impostos, mudança de postura na questão climática, mais controle de imigração contra o “multiculturalismo” covarde que coloca a nação em risco? Como não apoiá-lo quando um juiz conservador e sério é apontado para a Suprema Corte para resgatar a visão “originalista” contra os ativistas judiciais de esquerda?
Sim, Trump tem um lado mais bufão, um discurso que peca pelo tom nacionalista muitas vezes, e mesmo bandeiras estranhas aos liberais, como o “Buy American”. Mas é preciso ver o “big picture”, coisa que Vargas Llosa não foi capaz de ver, em minha opinião. Trump é uma reação, é um “remédio amargo” aos excessos dos “progressistas”, que são comunistas domesticados, mascarados, suavizados. Um amigo meu, jornalista de Goiás, foi preciso em seu comentário ao meu texto sobre ataques de fascistas de esquerda supostamente contra o “fascismo” de Trump:
Pelo visto, antes da chegada do populismo na política dos Estados Unidos, o terrorismo já havia chegado às universidades americanas. Trump apenas provoca a eclosão do ovo da serpente, que há muito vinha sendo chocado pela intelectualidade. Trump é efeito, não é causa de nada.
O mesmo se dá no Brasil. Cotidianamente, terroristas infiltrados nas universidades, muitos deles com bolsas de extensão ou pesquisa pagas pelo próprio Estado brasileiro, praticam pequenas ameaças terroristas, como invadir reitorias e agredir moralmente quem não compartilha da ideologia de gênero. Como a oposição institucional é limpinha demais para denunciar essa barbárie, esse tipo de terrorismo se fortalece a cada dia.
Cada vez mais cansada desse estado de coisas, a maioria silenciada pode acabar elegendo Bolsonaro e, quando isso ocorrer, teremos guerras campais nas universidades pelo país afora. Bolsonaro, então, será apontado como a causa de um fenômeno social que ele não criou — pelo contrário, também é resultado dele.
Trump não é o nosso maior inimigo, e sim a esquerda “progressista”, os socialistas que vêm concentrando mais e mais poder no estado, sempre com o pretexto de proteger as “minorias”, cuidar dos “pobres” ou “salvar” o planeta do derretimento iminente. Como Vargas Llosa pode ignorar isso? Como pode não perceber o contexto no qual Trump e o Brexit afloraram, justamente como uma resposta ao exagero esquerdista? E como pode, então, decretar o comunismo morto, em vez de se dar conta de que a ideologia apenas se adaptou, mas continua viva?
Talvez Vargas Llosa tenha deixado seu convívio com o establishment falar mais alto. Talvez tenha realmente perdido o elo com o povo, com o trabalhador de carne e osso, aquele que ainda busca no patriotismo e na religião os alicerces de sentido para sua vida. Afinal, Vargas Llosa é um “cidadão do mundo”, com suas residências espalhadas pela América Latina e Europa, circulando no “jet set” dos ricos e famosos, e isso pode tê-lo aprisionado numa bolha, fenômeno analisado com perfeição por Charles Murray em Coming Apart.
Continuo sendo grande admirador de Vargas Llosa, especialmente do ótimo escritor. Mas não posso deixar de manifestar minha discordância quanto à sua visão política da atualidade. Ela é incompleta e distorcida. Infelizmente, como a de muitos de meus colegas liberais, que se recusam a compreender que quando jacobinos bárbaros chegam aos nossos portões, ou pior, já estão do lado de dentro, minando toda a estrutura de nossa civilização, espalhando caos no lugar de ordem, é preciso reagir, com as armas que estiverem ao nosso alcance.
Rodrigo Constantino