Os defensores do livre mercado estão basicamente divididos em dois grupos: os seguidores da Escola de Chicago e os seguidores da Escola Austríaca. Na verdade, há mais similaridades do que diferenças entre elas, pois ambas acreditam fielmente no livre mercado e em mentes livres. Mas o fato é que divergências importantes acabam mantendo as duas escolas muitas vezes afastadas, ainda que seus seguidores compartilhem de muitos ideais através da Mont Pelerin Society, criada por importantes ícones de cada escola. O economista Mark Skousen, admirador das duas vertentes liberais, escreveu um excelente livro chamado Vienna & Chicago: Friends or Foes?. Nele, o autor tenta abordar as principais diferenças entre os dois grupos, sugerindo que a distância entre elas está se estreitando.
Antes de tudo, é preciso resumir os principais pontos em comum das duas escolas. Skousen acredita que suas diferenças não são tão graves, e encara ambas como herdeiras intelectuais da economia laissez-faire de Adam Smith. Seriam primas filosóficas, em vez de inimigas. Ambas colocam a propriedade privada em um patamar crucial para as bases de trocas, justiça e progresso na sociedade. Ambas defendem o capitalismo liberal e acreditam na doutrina da “mão invisível” de Adam Smith, de que as ações individuais motivadas pelos próprios interesses maximizam o bem-estar da sociedade. Ambas são extremamente críticas ao marxismo e suas crenças sobre exploração, alienação e demais noções anticapitalistas.
Ambas defendem o livre comércio, a imigração liberal e a globalização. Ambas condenam o controle de preços e salários, incluindo a legislação de salário mínimo. Ambas pregam, de forma geral, um governo bem limitado, cumprindo funções básicas. Ambas são defensoras da privatização e da desregulamentação. Ambas se opõem ao corporativismo do welfare state e atacam os privilégios concedidos pelo governo, pedindo igualdade perante a lei. Ambas rejeitam o planejamento central socialista e o totalitarismo. Ambas refutam o keynesianismo intervencionista que defende um governo grande para estabilizar a economia. Ambas são geralmente contra a taxação progressiva, o déficit nos gastos públicos e demais políticas do welfare state. Ambas preferem soluções de mercado para a poluição e demais problemas ambientais. Em resumo, as afinidades entre as escolas liberais são enormes.
Mas como elas seriam uma só se tudo fosse igual, existem importantes distinções. A primeira, e mais relevante, diz respeito à metodologia. Os “austríacos”, seguindo Mises, adotam uma postura dedutiva, subjetiva e apriorística para a análise econômica. Além disso, trabalham com um approach de processo dinâmico de mercado. Os “Chicago boys”, seguindo os trabalhos de Milton Friedman, preferem uma análise histórica, quantitativa e de equilíbrio para estudar os acontecimentos econômicos. Eles partem para estudos empíricos que poderiam comprovar teorias, enquanto os “austríacos” acham que dados passados podem apenas ilustrar uma teoria, que deve ter sustentação exclusivamente lógica. Para os “austríacos”, o estudo econômico deve ser construído em cima de axiomas auto-evidentes.
Outra diferença importante está na questão monetária. Os adeptos da Escola Austríaca costumam preferir o padrão ouro, ou alguma outra moeda adotada naturalmente pelo próprio mercado. A Escola de Chicago, por sua vez, rejeita o padrão ouro, e parte para uma receita monetarista, onde a oferta de moeda cresceria automaticamente a uma taxa neutra. Por fim, os “austríacos” costumam negar a validade dos agregados econômicos como ferramentas pedagógicas úteis. A macroeconomia é vista com bastante desconfiança por seus seguidores. Estas seriam, de forma resumida, as divergências mais relevantes entre as duas escolas.
A Escola Austríaca tem argumentado de forma persistente que um elevado nível de poupança voluntária dos indivíduos é a chave para o rápido crescimento econômico. Tanto o keynesianismo, que prega o consumo elevado como locomotiva do crescimento, como os ativistas monetários, que enfatizam a oferta de moeda como ingrediente chave para o crescimento, são atacados pelos “austríacos”. Para ser mais eficiente, toda a poupança deve ser voluntária, calcada nas livres escolhas individuais para determinar suas próprias preferências temporais. Na essência, a teoria do ciclo econômico da Escola Austríaca enfatiza como a inflação monetária feita por bancos centrais artificialmente distorce a estrutura da economia, causando uma bolha insustentável que deve necessariamente acabar estourando. O capital acaba alocado de forma ineficiente por conta da intervenção do governo, e o “dinheiro fácil” não apenas eleva os preços, mas também cria vencedores e perdedores. Os poupadores, aqueles que são responsáveis pela oferta de capital para investimentos produtivos, são justamente os grandes perdedores. A instabilidade econômica evidente em crises financeiras seria culpa das políticas monetárias do governo, segundo os “austríacos”, e não do livre mercado.
Não obstante o sólido arcabouço teórico, a Escola Austríaca não foi capaz de reverter o crescimento do keynesianismo durante a depressão de 1929. Segundo Skousen, o método de Chicago, com vasta base de dados, análises quantitativas e uso de matemática sofisticada para testar diversas teorias econômicas, foi mais útil para derrubar o dogmatismo dos discípulos de Keynes. Milton Friedman acabou trabalhando dentro do próprio sistema keynesiano, usando seus mesmos métodos para refutar sua “nova economia”. Friedman mostrou, usando ampla base de dados históricos, que as famílias ajustavam seus gastos somente de acordo com mudanças na renda permanente ou alterações de longo prazo, prestando pouca atenção aos padrões transitórios. Isso derrubava o mito do “multiplicador” keynesiano, cujo modelo se baseava num efeito alavancado no crescimento econômico para um aumento nos gastos do governo. Em uma época onde as ciências exatas eram transportadas para as ciências sociais, o método de Chicago surtiu um efeito maior na prática, ainda que a sofisticada lógica dos “austríacos” tenha derrubado as falácias dos keynesianos.
Apesar da força prática da metodologia empírica de Chicago, Skousen reconhece como extremamente válido o alerta de Mises e Hayek para os perigos do “cientificismo”. Existe um “lado negro” no uso de dados empíricos, quando os dados são utilizados de forma errada, são interpretados de maneira inadequada ou simplesmente estão errados. Interpretar a história não é fácil, pois se trata de um fenômeno complexo, com infinitas variáveis exercendo influência. Skousen conclui que ambos os métodos devem ser aplicados, tanto o empírico como a lógica dedutiva. De fato, Rothbard usa inúmeros dados para embasar seu estudo sobre a Grande Depressão. Por que não manter uma mente aberta em relação aos dois métodos? Skousen reconhece a importância do ponto de Mises sobre a dificuldade de prever o futuro, já que os economistas, de fato, carregam inúmeros erros de previsões passadas nas costas. A econometria, que olha para trás, não deve ser vista como fonte altamente confiável para antecipar o que ainda está por vir. A história pode até rimar, mas não se repete. Apesar disso, Skousen considera que Chicago está em vantagem em relação à metodologia. Em contrapartida, Skousen prefere a teoria de ciclo econômico da Escola Austríaca, assim como seu foco no processo dinâmico do mercado, em vez de modelos de equilíbrio.
De forma simplista, a Escola Austríaca é mais “pura” por defender seus ideais sem concessões ao pragmatismo, enquanto a Escola de Chicago suja as mãos no mundo real das políticas públicas, influenciando mais as decisões imediatas. Particularmente, acredito que há uma crucial função para ambas as posturas. Entendo que é fundamental alguém pregar o ideal, o ponto de chegada que devemos almejar. Mas entendo que também há um papel extremamente importante para quem joga com metas mais práticas e de curto prazo. A Escola Austríaca, nesse contexto, mostra onde deveríamos mirar, enquanto a Escola de Chicago apresenta opções concretas para o trajeto. Para sair de A até C, talvez seja preciso passar por B. A Escola de Chicago foca bastante nas “second-best solutions”, nas alternativas viáveis. Se eu tivesse que resumir em uma expressão, a Escola de Chicago pensa que o ótimo é inimigo do bom, e luta pelo bom possível.
Mas assumindo o papel de advogado dos “austríacos”, até por ter um viés mais nessa direção, eu lembraria que o inverso também pode ser verdade, ou seja, o bom muitas vezes é inimigo do ótimo. O que quero dizer com isso é que em muitos casos podemos deixar para trás o ótimo, justamente porque objetivamos e ficamos satisfeitos apenas com o bom. Quem coloca como meta a medalha de bronze, que com certeza é melhor que nada, pode estar abandonando as chances de conseguir a medalha de ouro.
O livro de Skousen é dedicado aos membros da Mont Pelerin Society, exatamente porque são amigos tanto da Escola de Chicago como da Escola Austríaca. Afinal, ambas defendem a liberdade individual, o capitalismo de livre mercado, e lutam contra inimigos comuns, intervencionistas e defensores do planejamento central, que desconfiam da ordem espontânea e, por conseguinte, condenam o livre mercado. Os inimigos, infelizmente, ainda têm conquistado muito espaço no campo das idéias, mesmo depois de evidentes fracassos de suas crenças. Por esta razão, e também por entender que as semelhanças são mais importantes que as divergências, eu procuro olhar as duas escolas como complementares, e não como inimigas.
Milton Friedman, George Stigler, Gary Becker, Mises, Hayek, Rothbard e Kirzner, entre outros, podem ter opiniões conflitantes sobre determinados temas. Mas de forma geral, estão bem mais próximos uns dos outros do que qualquer um deles em relação aos defensores do intervencionismo estatal, seja o keynesiano, seja o marxista. Viena e Chicago, ambos representam ícones da luta pela liberdade. O mundo será definitivamente um lugar bem mais livre quando o debate de idéias for dominado por estas duas escolas. Aí sim, o foco poderá ser bem maior nos aspectos que afastam Viena de Chicago. Até este dia – que ainda não parece estar próximo – o ideal é focar nos fatores de convergência entre elas, para garantir munição pesada contra os inimigos da liberdade.
Rodrigo Constantino