Mark Zuckerberg escreveu um “manifesto” em que imagina um futuro completamente modificado pela força das redes sociais, onde as guerras e a pobreza, assim como as angústias, desaparecem do mapa. Esse foi o tema da coluna de João Pereira Coutinho na Folha hoje.
Coutinho começa levantando a hipótese – logo descartada – de se tratar de uma peça de humor, o que não combina com o fundador do Facebook. Ele não parece se encaixar na categoria dos utopistas satíricos, “gente profundamente descontente com a realidade em volta e que usa a literatura para divertir ou moralizar”.
Logo, resta a alternativa de ele ter falado a sério mesmo. O que torna tudo mais lamentável. Afinal, quando a Miss Universo repete que seus desejos são por um mundo de paz e prosperidade, damos um desconto, já que não são exatamente seus atributos intelectuais que estão em julgamento – para desespero das feministas recalcadas. Mas quando um bilionário influente leva a sério tal mensagem, é motivo para espanto:
Em teoria, um mundo sem pobreza, sem guerra, sem angústia e sem solidão pode ter os seus encantos. De preferência, se for proposto por uma candidata a Miss Universo com biquíni a condizer.
Mas imaginar o sr. Zuckerberg em tais preparos, para além de esteticamente arrepiante, é politicamente aberrante: aquilo que define a espécie humana é a diversidade de interpretações e soluções sobre qualquer assunto social.
No jardim de infância dos românticos, o mundo será um lugar pacífico se todos escutarem “Imagine”, de John Lennon. Mas no mundo real, sabemos que questões complexas entram em cena, e que quase sempre podemos falar apenas em “trade-offs”, não em “soluções”.
A questão da pobreza, por exemplo, demanda logo saber: como reduzi-la? E é aí que mora o problema verdadeiro. Tirando dos outros? Adotando um sistema de liberdade econômica com pouca regulação? Ou seja, o debate no mundo dos adultos não permite utopias bobocas que imaginam um mundo sem miséria, por mais acalentador que isso seja. E o debate irá chegar invariavelmente em dilemas morais, já que não existe uma única receita de bolo para tudo.
A utopia política é sempre coletivista, pois não permite espaço para a verdadeira pluralidade de ideias – e, portanto, soluções. Coutinho ataca isso já no começo do “manifesto” de Zuckerberg:
As minhas gargalhadas começaram logo no princípio: “Estamos a construir o mundo que todos queremos?”, pergunta o profeta Mark. Não, meu filho, não estamos. Cada um constrói o mundo que entende porque a ideia de um propósito comum só existe na cabeça de um fanático. Pior: de um fanático que acredita falar em nome de “todos”.
Em meu livro Liberal com orgulho, coloquei duas epígrafes que resumem bem a postura liberal diante disso, em contraponto a essa visão esquerdista utópica e arrogante:
“O liberal é humilde. Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem certeza é que a incerteza requer a liberdade, para que a verdade seja descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência – ou seja, sua ignorância e arrogância – aos seus concidadãos.” – Raymond Aron.
“Devemos buscar a perfeição na criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O paraíso não é igual para todos.” – Mário Vargas Llosa.
Falta a esses “progressistas” uma humildade maior para reconhecer isso, para admitir que a sua própria visão de mundo é limitada, não é capaz de englobar todos os anseios e objetivos individuais. O seu “paraíso” pode ser o inferno para terceiros. Essa gente deveria ler Thomas Sowell, Isaiah Berlin e outros pensadores do tipo, que mostram como a maturidade é justamente aceitar as limitações do mundo real, em vez de querer que o mundo todo se curve diante de seus sonhos infantis.
Zuckerberg não poderia deixar de fora de sua utopia a tecnologia, claro. Ele acha que a inteligência artificial vai nos salvar. Deveria ver “Black Mirror”, a série da Netflix que retrata como distopia essa crença perigosa, ignorando que a natureza humana não costuma “evoluir” no mesmo ritmo do progresso tecnológico.
Outro ponto-chave de sua utopia é a “democracia direta”, que o próprio Facebook poderá viabilizar como ferramenta. Coutinho condena essa solução também:
Finalmente, o óbvio: com o Facebook, eleitores e eleitos estarão mais próximos do que nunca, escutando-se mutuamente. Tradução: se “a tirania da maioria” aprovar atos de barbaridade, o político, para ser eleito, defenderá atos de barbaridade.
Os mecanismos de mediação que as democracias liberais sempre defenderam (tribunais, parlamentos etc.) devem ser derrotados em nome da “vontade geral”, essa categoria sinistra que Rousseau legou aos seus discípulos.
Enfim, Zuckerberg não defende coisas novas, e em vários sentidos é um ícone do que chamamos de “globalistas”, aqueles que pensam que “os problemas globais só podem ser enfrentados por uma espécie de ‘comunidade global’ –um eufemismo para ‘governo global'”. Os conservadores, como Roger Scruton ou Michael Oakeshott, partem de prismas diametralmente opostos, preferindo as soluções locais, justamente porque reconhecem os riscos autoritários dessas alternativas “globalistas”.
Coutinho conclui de forma direta: “O manifesto de Mark Zuckerberg é um documento megalômano e autoritário escrito com a tinta ilusória das boas intenções. Se adolescentes assim não têm noção do ridículo, o mundo já será um pouco melhor se os adultos não perderem o deles”. O problema é que cada vez mais adultos querem bancar os adolescentes, e alguns possuem bilhões para tanto…
Rodrigo Constantino
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