Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Tenho sempre recomendado que os liberais brasileiros conheçam melhor a obra e o pensamento de José Guilherme Merquior, um dos mais qualificados intelectuais que o país já teve e um grande historiador do liberalismo. Seu livro O Liberalismo Antigo e Moderno é um apanhado inescapável da trajetória do liberalismo e de suas diferentes escolas e desenvolvimentos.
Ele, porém, era um representante assumido do que chama de “social liberalismo”. Conforme expus em meu livro de estreia, o Guia Bibliográfico da Nova Direita, aqueles a quem Merquior chamava de sociais liberais ou “novos liberais” “queriam ‘implementar o potencial para o desenvolvimento do indivíduo que fora caro a Mill em seguimento a Humboldt e ao fazê-lo pensaram no direito e no Estado como instituições habilitadoras’, levando-os além do ‘Estado minimalista’”. Para eles, era preciso que os liberais se livrassem da “estatofobia”, aceitando uma atuação maior do Estado no sentido de “emancipar os indivíduos para a disputa na vida”.
Para os sociais liberais históricos, “o Estado deveria ser um agente facilitador, cuja ação deveria ‘consistir na remoção de obstáculos ao autodesenvolvimento humano’”. Eles estavam “ancorados no universo ‘progressista’ em política, mas não chegavam a ter uma concepção estatizante de economia ou autoritária em política, própria dos socialistas e sociais democratas de seu tempo”. Merquior situa nessa categoria nomes como John Hobson, John Dewey, John Rawls, Norberto Bobbio e até John Maynard Keynes, cuja origem não estava na esquerda, na leitura de Merquior, mas no liberalismo inglês, preconizando a atuação do Estado em crises para salvar o capitalismo e não destruí-lo.
Liberais como os da Escola Austríaca, particularmente Mises e Hayek, que enfrentavam as ideias de Keynes e, principalmente, de seus seguidores que exacerbaram suas teorias, eram vistos por Merquior como defensores do que ele chamava de “neoliberismo”, sendo “liberismo” a valorização da liberdade econômica, algumas vezes, na concepção de Merquior, exagerada em detrimento de outros aspectos.
Apreciar o trabalho de Merquior não significa identificar-se com o social liberalismo por ele proposto, tampouco endossar todas as suas críticas aos austríacos e aos liberais ditos “neoliberistas”, nacionais e estrangeiros. Essas críticas foram combatidas, por exemplo, conforme ressalta um dos maiores especialistas em Merquior, o sociólogo Kaio Felipe (UERJ), pelo embaixador José Osvaldo de Meira Penna, em época em que os dois pensadores frequentavam os círculos intelectuais do Instituto Liberal, contribuindo para a riqueza dos debates e a pluralidade interna da instituição.
Acredito pessoalmente que as críticas de Merquior se tornam mais exageradas e inadequadas em outra obra de sua lavra, O Argumento Liberal. O livro, recentemente relançado pela É Realizações – tomo por referência, entretanto, a edição de 1983 da Nova Fronteira -, é uma coletânea de ensaios profundos de Merquior sobre diversos temas filosóficos e sociais, nem todos tão explicitamente ligados à temática do liberalismo.
Em um deles, Raízes da tradição autoritária, originalmente publicado no Jornal do Brasil em 1982, Merquior alega que, no Brasil, “a oposição ao autoritarismo tende a confundir autonomia da sociedade civil com liberalismo econômico absoluto”. Nossos “neoliberais”, para ele, “raciocinam como paleoliberais, saudosistas de uma ordem socioeconômica vitoriana, alheia ao princípio moderno da economia social do mercado e aos deveres do Estado num país em desenvolvimento”. Isso seria responsável por manter a ideologia liberal restrita a determinados grupos sociais, enquanto a sociedade brasileira, em verdade, precisaria de um Estado simultaneamente eficiente e responsável.
Em outro texto, Sociedade civil: mito e realidade, originalmente lançado em O Estado de São Paulo, também em 1982, Merquior questiona que, “no Brasil dos nossos dias, a moda é a apologia da sociedade contra o Estado. De acordo com esse estado de espírito, o pecado original da sociedade brasileira é a atrofia da sociedade civil, e a palavra de ordem, a denúncia generalizada do Estado. Curiosamente, encontramos essa estadofobia tanto à direita, servida à la Hayek, quanto à esquerda, com molho Gramsci (…). O que os nossos estadófobos de direita e esquerda tendem a esquecer é todo um conjunto de circunstâncias. Por exemplo, a nossa tremenda carência de serviços sociais básicos, como educação e saúde, de implementação inconcebível sem a presença do Estado”.
Merquior conclui dizendo que o maior problema brasileiro não seria a hipertrofia estatal, mas a sua forma “patrimonialista”. O social liberalismo deveria defender, para ele, um Estado que não fosse “nem um simples guarda de trânsito, como querem os neoliberais, nem um general, como preferem os dirigistas à outrance”.
Pontue-se que as considerações de Merquior não significam que tenha desprezado os economistas da Escola Austríaca ou da Escola de Chicago. Ao contrário, ele reconhece àqueles que chama “neoliberais” seu lugar na história do liberalismo e o valor de suas críticas ao marxismo. Não foi outra a tônica de sua proximidade com os liberais que atuavam no Instituto Liberal.
Pessoalmente, entretanto, considero essas críticas bastante injustas e desconectadas da realidade. Primeiramente porque, se está ajustado à melhor tradição liberal brasileira, a exemplo da linha seguida pelos pupilos do professor Antonio Paim, em reconhecer o mal do patrimonialismo, não é possível concordar com Merquior em sua visão de que a hipertrofia estatal não estava no centro do problema – ainda mais considerando que tal crítica aparece nos anos 80, em tempos de hiperinflação, multiplicação de estatais e regulamentações jurássicas. O próprio Merquior reconheceria esse problema em boa medida noutras oportunidades, o que torna sua declaração um tremendo exagero inapropriado.
Da mesma forma, sua vinculação de Hayek à ideia “estadofóbica”, segundo ele, de que os liberais brasileiros se valeriam para rejeitar a atuação do Estado até nas áreas da educação e saúde, é inaceitável. Sem dúvida existem hoje, mais do que à época, liberais mais radicais, objetivistas (discípulos da filósofa Ayn Rand) e libertários que se orgulhariam em se enquadrar na designação de Merquior. Porém, Hayek é justamente um dos alvos dos ataques destes últimos, porque acreditava na utilidade de intervenções do Estado no auxílio dos mais pobres e em situações emergenciais, aceitando até a ideia de uma renda mínima para os mais miseráveis.
Milton Friedman, ícone da Escola de Chicago, defendia o uso dos vouchers justamente para educação e saúde e boa parte dos liberais brasileiros contemporâneos de Merquior não chegava sequer aos pés dos extremos que seus pares defendem hoje. Por isso, sua análise é uma tremenda exorbitância.
Nada disso escrevo com o propósito de diminuir a importância de conhecer a obra do grande pensador brasileiro, que muito tem a contribuir para a direita contemporânea. Este é unicamente um convite à sua leitura crítica e ao salutar exercício da separação do joio e do trigo, convite que certamente o próprio Merquior endossaria.
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