Por Gabriel Wilhelms, publicado pelo Instituto Liberal
A liberdade de expressão é um dos valores ocidentais mais caros e, embora possa haver divergências profundas entre diferentes grupos liberais em outras pautas, sua consagração entre estes, acredito, é unânime. Quando ameaças a essa liberdade partem do Estado, o grau de risco se faz mais perceptível e bem sabemos que por aqui temos presenciado tal fenômeno em demasia, a exemplo do ilegal inquérito das fake news do STF, da aprovação no Senado de uma legislação que – sob a promessa de combater as fake news – promove a censura nas redes, e do Executivo usando órgãos como o Ministério da Justiça e a AGU para perseguir jornalistas. Há, porém, um tipo particular de ofensa à livre expressão que se vem fazendo cada vez mais notória a nível mundial, produto direto do identitarismo radical e personificado de forma mais dramática por meio da “cultura do cancelamento”.
Creio que o leitor esteja bem familiarizado com o que estou falando e não é necessário prolongar o relato sobre o modus operandi dessa turma. Quando confrontados com uma opinião que não compartilham e/ou que contradiga suas convicções identitárias, partem para o ataque – e por ataque leiam a tentativa de destruição de reputações, vidas e carreiras por meio do linchamento moral e virtual. Estes são, é claro, uma minoria, mas uma minoria barulhenta e que por vezes logra sucesso em suas táticas censoras. Por que isso acontece? Porque a tática de destruição de reputações é um método coercitivo e muitos, famosos especialmente, preferem se curvar e forjar pedidos de desculpa autodepreciativos. É por isso que o único antídoto efetivo contra esse orquestrado ataque à liberdade de expressão e essa repugnante tentativa de uniformização do pensar é não se curvar e denunciar o autoritarismo embutido em um discurso de “justiça social”.
Foi nesse sentido que diversas personalidades públicas, com nomes tão diversos quanto J.K. Rowling, Noam Chomsky e Steven Pinker, assinaram e divulgaram uma carta aberta nesta terça (07) denunciando um crescente ambiente de enfraquecimento do debate e a ascensão de uma conformidade ideológica. Na carta, eles defendem o caminho da discussão de ideias em lugar do linchamento praticado pela espúria cultura do cancelamento.
Não acredito que sejam relevantes as posições políticas de cada um dos signatários – Chomsky é célebre por posições à esquerda, por exemplo -, uma vez que advogam a liberdade de expressão para todos e porque a adesão de pessoas de esquerda demonstra que mesmo nesta (a esquerda) há os que rechaçam essa forma de militância, o que não deixa de ser um trunfo para o necessário isolamento dessa minoria.
Uma das signatárias, J.K. Rowling, tem sido uma constante vítima dos “canceladores” que a acusam de ser “transfóbica”, tendo também divulgado uma carta há cerca de um mês explicando e defendendo suas posições. A carta expõe uma das principais facetas dessa militância, que é a mentira. Acusam J.K. Rowling de transfóbica por ela ousar declarar a obviedade de que sexo é algo real. Ela, inclusive, diz reconhecer a existência de transgêneros, mas critica os exageros dessa militância, a exemplo de uma lei do Reino Unido que concede um “Certificado de Reconhecimento de Gênero” para aqueles que se identifiquem como sendo do sexo oposto, independente de procedimentos cirúrgicos ou ingestão de hormônios. Um homem que se disser uma mulher pode, por sua declaração, ser reconhecido como tal aos olhos da lei, podendo inclusive usar banheiros femininos.
O caso dela, por ela ser quem é, é emblemático, pois de um lado ela não se curvou em nenhum momento, como tantos outros já fizeram, e por outro, chega a ser risível a pretensão dos que pensam que conseguirão “cancelar” a autora de Harry Potter. No entanto, eles poderiam conseguir isso, e para tal bastaria que ela sucumbisse, renunciasse a suas opiniões e fizesse um mea culpa confessando algum preconceito “internalizado”. Esta é a grande questão: os autoritários do politicamente correto só são bem sucedidos em angariar poder quando suas vítimas lhes delegam voluntariamente esse poder – e é isso exatamente que não podemos fazer. Nesse sentido, a referida carta é um bom sinal, mas sozinha não fará milagre.
Infelizmente, essa perseguição politicamente correta não se restringe às redes sociais, está também muito presente no ambiente acadêmico. Nos últimos dias, Steven Pinker, linguista, escritor e também signatário da carta, também sofreu uma tentativa de cancelamento por meio de uma carta (tantas cartas) enviada para a Sociedade Americana de Linguística (LSA) e assinada por 600 linguistas pedindo sua remoção do quadro de membros prestigiados. Qual foi o grande “crime” de Steven Pinker? Contradizer, sempre baseado em evidências, teses defendidas, agora mais do que nunca, acerca de pautas como o machismo e o racismo. Repete-se o padrão da mentira, tentando incutir em Pinker a pecha de racista. O que esperar de acadêmicos e intelectuais que não aceitam contradição e que acham que evidências empíricas devem ser ocultadas se elas, de alguma forma, podem macular e contradizer pautas identitárias? Steven Pinker, aliás, é autor de um dos livros que melhor destrona as maluquices anticientíficas baseadas na ideia de construção social: Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. Recomendo fortemente.
É preciso que reajamos e, principalmente, é preciso que aqueles que se tornam vítimas desses censores culturais reajam. O modus operandi da chantagem emocional e do linchamento moral só funciona se as pessoas sensatas se silenciarem. Por ora, trata-se de um combate cultural, distante, como deve estar, das garras do Estado.
Essa reação só será efetiva se não servir de guarida para aqueles que, infiltrados entre os que reagem ao politicamente correto, realmente propagam coisas indefensáveis. É preciso fugir do oito ou oitenta de achar que reconhecer que coisas como racismo, machismo e homofobia existem e são um problema significa ser de esquerda ou progressista. Na verdade, tal crença é a razão por que a esquerda vem conseguido monopolizar cada vez mais a defesa das minorias e colar na direita a pecha de intolerante. Cabe-nos responder a essas questões de forma alternativa ao que a militância identitária vem fazendo, com respeito à individualidade e à liberdade, aqui incluindo a liberdade de expressão. A defesa do indivíduo no liberalismo se dá de maneira impessoal, não condicionada a cores, sexos, credos e demais opções que não lesem terceiros – e é essa impessoalidade que devemos ressaltar.
Não podemos também sucumbir ao mito do “lugar de fala”, outro conceito autoritário e antidemocrático, criado para empurrar determinadas pautas goela abaixo por meio da chantagem emocional. A crença em que há tal coisa como um lugar de fala, de modo que brancos não podem opinar sobre racismo, homens sobre machismo, e por aí vai, é extremamente contraditória, especialmente quando encampada por movimentos que se queixam da falta de empatia por suas causas e sofrimentos. Ora, pretendem fazer proliferar empatia sem debate? Se tudo o que querem é uma audiência cativa e silente, tudo que conseguirão será o repúdio daqueles que se recusam a se calar. A faceta se torna ainda mais antidemocrática quando o conceito é aplicado na discussão de políticas públicas. Será que algo como as cotas raciais deveria ser discutido apenas por negros? Não; se a política pública é feita com o meu dinheiro, eu opino o quanto quiser – e não é uma horda de chantagistas que vai me impedir.
Essa é uma batalha cuja derrota pode ser irreversível; daí a razão de dizer que esse ataque à liberdade de expressão talvez seja ainda mais grave que o estatal. Alterar uma lei censora, por exemplo, pode ser muito mais simples do que recuperar um ambiente de debate culturalmente massacrado. Repito: eles são uma minoria e não acredito que tenham tamanho poder em mãos, mas para que não venham a ter é importante expor o ridículo de suas táticas e responder às suas coerções. É preciso cancelar a cultura do cancelamento.
Fontes:
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS