Por Pedro Henrique Alves, publicado pelo Instituto Liberal
Todos, de alguma maneira, estão falando do julgamento da década para o nosso Supremo Tribunal Federal; isto é: a decisão da corte sobre a “legalidade” da prisão em segunda instância. Debate que, em países cuja consciência jurídica não se encontra banhada na fossa ideológica do progressismo, se resume a elucubrações completamente sem pé na realidade. Sequer gastarei o meu e o seu tempo para relembrá-los do terreno violento que se tornou o habitat social do brasileiro. Também não falarei do estupro numérico que acontece quando comparamos crimes solucionados com os não-solucionados; aliás, sequer tocarei no assunto da insegurança pública geral — preciso citar a corrupção?
É bem verdade que o julgamento ainda não terminou, apesar do placar vislumbrado — tendo como referência as opiniões anteriores de cada ministro — pesar contra aqueles que vivem a realidade; aqueles que não têm dezenas de seguranças particulares, nem salários de 37 mil reais. A Gazeta do Povo, “otimista que só ela”, vislumbra uma mudança de lado do amigo de Bolsonaro — e ex-amigo de Lula — Dias Toffoli. O otimismo não é de todo infundado, o voto do ministro “camaleão” ainda jaz no limbo das possibilidades; mas deixe-me lembrar do efusivo elogio que o togado teceu ao voto contrário à prisão em segunda instância da ministra Rosa Weber: “Belíssimo voto”.
O Brasil possui o contexto ideal para aceitar, de antemão, com um sorriso no rosto e braços abertos, a prisão em segunda instância; não por correção filosófica, dívida histórica ou por quaisquer outras tolas abstrações ideológicas que podem ser inventadas, mas pelas toneladas e mais toneladas de realidades violentas que todos os dias são despejadas em nós. Prisão em segunda instância, para nós, é questão de sobrevivência social e individual, questão de segurança moral e corporal dos cidadãos. Esse julgamento não tem nada a ver com as elucubrações empoladas que acontecem nas torres de marfim das universidades; tem a ver com as praças, onde o povo pisa e geralmente morre.
Ainda que a constituição dê margens para interpretações contrárias à prisão em segunda instância — e realmente dá —, os ministros deveriam compreender que eles não estão no olimpo acadêmico, discutindo ilações intelectuais intangíveis ou utopias sociais esvoaçantes. Deveriam saber, por primazia, que estão debatendo princípios cujas aplicações terão efeitos imediatos. O que eu quero dizer é que, nesse caso em específico, o punhal da argumentação não é apenas metáfora, ele realmente pode matar.
De pessoas ligadas a corrupções sistêmicas, facções de tráfico e demais organizações criminosas até criminosos dispersos em suas leviandades próprias, a decisão da Suprema Corte pode simplesmente abrir as portas do inferno para tais condenados. Como bem alertou o literato soviético, Mikhail Bulgákov, em O mestre e Margarida, brincar com as portas do inferno pode ser o princípio do pandemônio social; uma porta que, após aberta, dificilmente volta a fechar.
Confesso que, sendo um conservador, de vez em quando exagero no whisky do ceticismo e do pessimismo político. Não obstante, não é possível que todos os homens sensatos dessa nação estejam bebendo da mesma garrafa que eu. Gertrude Himmelfarb, sensacional historiadora americana, afirmou em Os caminhos para a modernidade que o iluminismo americano representou a “política da liberdade” no contexto iluminista mundial; a autora explica ainda que uma das características que ornamentavam esse elogio aos Estados Unidos era o fato de o pragmatismo ser efetivamente uma via de ação e de consciência do cidadão americano. Substituir as infindáveis discussões sobre “o sexo dos anjos” por um pouco de objetividade — creia — pode salvar a cultura, uma nação.
Ou seja, a liberdade e a SANIDADE dependem da nossa capacidade heroica de, por vezes, minorar as infindáveis questões interpretativas de um obtuso texto constitucional para as simples e óbvias causas do agora. Temperar as difíceis questões éticas e estéticas com as objetividades dos fatos, eis aquilo que Chesterton chamou de “a missão do poeta”. Apesar das possíveis interpretações costuradas nas entrelinhas dos grossos livros de direito que ninguém lê; independentemente da ridícula, enfadonha e obesa constituição que nós ostentamos; o essencial, meus caros, não são as vírgulas ou os negritos de que dispomos nos textos após lê-los, pelo menos não quando a segurança de uma nação inteira jaz em risco pelas ninharias intelectuais e ideológicas de alguns pseudodeuses de toga.
Teoricamente, recusar a prisão em segunda instância é uma garantia humana ao réu; pragmaticamente dizendo, no entanto, significa que nos tornaremos o primeiro país da história humana cuja penalização social, após a certeza do crime cometido, não poderá ser efetivada contra o seu feitor ou financiador. Seremos o único país do mundo onde, agora por vias legais, o crime realmente compensará.
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