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A crise do coronavírus deixou os nervos de todos à flor da pele, e o que já era um "debate" polarizado nas redes sociais virou uma guerra tribal. Quem quer que tentasse chamar a atenção para o aspecto econômico era logo alvo de duros ataques, como se "não ligasse para a vida humana". Bastava mencionar o desemprego para ser visto como um "assassino de velhinhos".
Alguns estavam sendo apenas oportunistas, adotando a antiga tática de monopolizar os fins nobres num debate a posar de únicos defensores dos idosos e doentes, grupos de risco do Covid-19. O tiro saiu pela culatra, pois à medida que ficou claro o tamanho do estrago econômico das paralisações e do isolamento social, essas pessoas foram vistas como insensíveis para com os pobres. O cobertor do lacre é sempre curto.
Mas há gente genuinamente disposta a colocar "vidas humanas" acima da economia, sem ser sensacionalismo barato de quem, como fizeram Rodrigo Maia, Ronaldo Caiado e João Doria, repete que temos de priorizar a saúde e não os "empresários gananciosos preocupados com seus lucros e ações na bolsa". Os economistas, porém, alegam se tratar de falsa dicotomia, e lembram que sempre existe um trade-off envolvido e custo para cada vida humana.
O melhor texto que li sobre o assunto foi de Noah Feldman na Bloomberg, explicando os motivos pelos quais epidemiologistas e economistas continuam debatendo - e se desentendendo. A principal razão é que cada grupo foi treinado com um mapa de fundo diferente, e não é trivial abandonar esses hábitos enraizados e tentar se colocar no lugar do outro.
Para simplificar demais, diz ele, pense nos epidemiologistas como especialistas que passaram toda a sua carreira se preparando para entender e suprimir doenças que se espalham rapidamente. Sua tendência intelectual distinta é construir modelos de transmissão e depois desenvolver intervenções no mundo real para alterar o resultado esperado. Seu principal valor é preservar a saúde pública.
"Achatar a curva" é sua grande, talvez única, prioridade no momento de uma epidemia. Isolamento social, lockdown, confinamento compulsório até, tudo passa a ser ferramenta útil para atingir o único objetivo: reduzir o número de infectados e salvar vidas - que seriam afetadas pelo vírus em questão. O resto é o resto.
Já economistas focam no resto. Eles também possuem seus modelos, e se preocupam com os resultados econômicos das intervenções no funcionamento da economia. Ao contrário dos epidemiologistas, que identificam um inimigo biológico e tentam derrotá-lo sem pensar muito nos custos, os economistas vivem de trade-offs e análises de custos de oportunidade. É um artigo de fé para os economistas que não existe um valor absoluto - nem mesmo o valor da vida humana. Soa frio, sem dúvida, mas é realista.
A maioria dos economistas assume a dura realidade de que ajudar uma pessoa geralmente deixa outra menos abastada ou protegida. Quando se trata de tomar medidas políticas relacionadas à saúde, os economistas gostam de apontar que estamos implicitamente ou explicitamente atribuindo um valor econômico mensurável à vida humana. Se reduzíssemos o limite de velocidade para 10 km/h, quase não haveria mortes no trânsito, eles gostam de nos lembrar. O limite de velocidade de 80 ou 100 km/h impõe um preço à vida humana, gostemos ou não de admitir.
Além disso, os macroeconomistas normalmente passam suas carreiras se preparando para entender e responder a crises na economia. Eles estão profundamente sintonizados com os graves perigos associados a uma economia paralisada. Quando veem os governos adotando medidas que terão exatamente esse efeito, e sem precedentes em nível global, são pré-condicionados a responder com horror e aconselhar um curso de ação diferente.
O resultado dessas diferentes visões de mundo é que, em geral, os epidemiologistas estão insistindo que devemos tomar todas as medidas necessárias para controlar a propagação do Covid-19. Enquanto isso, muitos economistas estão dizendo que devemos encontrar uma maneira de reabrir a economia e que devemos ponderar explicitamente a troca entre a saúde relacionada ao vírus e o bem-estar humano mais amplo, que é em boa parte um produto de uma economia em funcionamento. Feldman conclui:
O conflito entre essas duas abordagens virá à tona se e quando a taxa de novas infecções e mortes nos Estados Unidos começar a diminuir como resultado do isolamento social. É quando os economistas dirão que é hora de as pessoas começarem a voltar ao trabalho. E é quando os epidemiologistas dirão que estamos cortejando o desastre de um surto recorrente. Enquanto isso, o melhor que podemos fazer é ter consciência de nossas próprias tendências intelectuais.
Bingo! Como um economista que tentou alertar desde o começo para os custos envolvidos nas medidas drásticas, e que foi por isso detonado e rotulado quase de "sociopata" nas redes sociais, entendo perfeitamente a divergência de abordagem, e a necessidade de buscarmos algum equilíbrio, evitando os extremos e aqueles que tentam monopolizar as preocupações com vidas e/ou economia. A esses "espertinhos", deixo o recado de Matt Walsh:
Qualquer um que diga "você está colocando dinheiro acima das pessoas" para quem está preocupado com a destruição da economia é um idiota ou um mentiroso. Não há como alguém honesto e inteligente olhar para 10 milhões de desempregados em 2 semanas e não entender por que estamos preocupados.