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Por Ricardo Vélez-Rodriguez, publicado pelo Instituto Liberal
O Estado Novo (chamado, também, de Terceira Republica Brasileira) foi proclamado por Getúlio Vargas (1883-1954) em 10 de novembro de 1937 e vigorou até 31 de janeiro de 1946. Constituiu a definitiva implantação, no plano nacional, do modelo autoritário da “ditadura científica” que foi instaurado, pioneiramente, no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos (1860-1903), região onde se firmou esse modelo, ao longo da República Velha, sob a liderança de Borges de Medeiros (1863-1961), José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), Getúlio Vargas e outros gaúchos de prol, pertencentes à chamada “primeira geração castilhista”. Participaram da implantação do Estado Novo lideranças gaúchas e mineiras que tinham tomado parte na Revolução de 1930, sob o firme comando autoritário de Getúlio Vargas.
Serão desenvolvidos, no presente artigo, os seguintes itens: I – A revista Cultura Política. II – As ideias de Almir Bonfim de Andrade. III – O papel desempenhado por Cultura Política no seio do Estado Novo. IV – A questão da modernização do Brasil e a prevalência do Castilhismo entre as correntes autoritárias.
I – A revista Cultura Política.[1]
Esta publicação foi o mais importante meio impresso para a divulgação das ideias que presidiam o regime instaurado em 1937, tendo sido, sem dúvida, o principal órgão teórico do Estado Novo. Como acertadamente frisou Marcus Faria Figueiredo (1942-2014), ela foi “(…) um dos mais importantes instrumentos de difusão da ideologia do regime vigente. Tal publicação é, hoje, para o cientista social, elemento indispensável de consulta, visando ao conhecimento do pensamento político da era Vargas”.[2] Essa revista reuniu colaboração de amplo segmento da elite intelectual e burocrática do Estado Novo, não se limitando a nomes de relevo, como Antônio José de Azevedo Amaral (1881-1942) ou Raymundo de Monte Arrais (1882-1965).
Poucos nomes tornar-se-iam conhecidos posteriormente, como se pode ver de uma simples enumeração dos mais citados: José da Rocha Lagoa (professor na Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil); Deodato de Moraes (do Instituto Brasileiro de Cultura, Técnico de Educação e chefe do 1º Distrito Educacional da Prefeitura do Distrito Federal). Vicente P. Umbelino Souza (Diretor da divisão de Organização e Assistência Sindical do Ministério do Trabalho; Rudolf Aladar Métall (Assistente técnico do Instituto de Aposentadoria e Pensões); Valdo de Vasconcelos (Procurador da Justiça do Trabalho e Diretor da Revista de Crítica Judiciária); José Veríssimo Filho (Presidente da 3ª Junta de Conciliação da Justiça do Trabalho da região de São Paulo); Martinho Garcez Neto (Juiz em exercício da 5ª Vara Cível da Justiça do Distrito Federal); Ademar Vidal (Procurador da República no Estado da Paraíba); João de Rocha Moreira (Procurador Regional da Justiça do Trabalho do Estado do Ceará); Alcides Marinho Rêgo (médico dos Institutos de Aposentadoria e Pensões e autor da obra A vitória do direito operário no decênio 1930-1940); Fernando Callage (Chefe da Sessão de Publicidade e Biblioteca do Departamento /Estadual do Trabalho de São Paulo); Paulo Augusto de Figueiredo (Presidente do Departamento Administrativo do Estado de Goiás); Menelick de Carvalho (Diretor da Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais); João Pedro Müller (Professor da Escola Técnica Secundária na Prefeitura do Distrito Federal); Oscar Tenório (Juiz de Direito em exercício na 12ª Vara Cível da Justiça do Distrito Federal); Mário Cassasanta (Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais).
Colaboravam na Revista, também, alguns militares como o capitão do Exército e membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, Severino Sombra (1907-2000), e o tenente-coronel do Estado Maior da 4ª Região Militar, Inácio José Veríssimo, autor de conhecida obra, publicada em 1944, sobre estratégia militar.[3] Além desses colaboradores, que de alguma forma estavam vinculados ao Estado Novo, além de outros oficiais do Exército, bem como funcionários estaduais ou federais, apareciam, entre os colaboradores da Revista, figuras de alguma significação na formulação do pensamento autoritário, como o jornalista Lourival Fontes (1899-1967), diretor da revista Hierarquia, que desde 1931 vinha sendo editada, no Rio de Janeiro, ou os já citados Azevedo Amaral ou Monte Arrais.
Esta rápida enumeração dos colaboradores da revista Cultura Política revela que a publicação estadonovista não buscava a prevalência de uma linha de pensamento, mas a difusão das várias correntes autoritárias. “Propomo-nos servir à cultura brasileira – frisava o editorial de lançamento – acolhendo valores de todas as procedências, refletindo o pensamento e a atividade criadora das gerações que hoje coexistem, no norte, no centro e no sul do Brasil, e através de todos os setores de sua vida intelectual-política, econômica, social, literatura, folclore, artes e ciências, usos e costumes, filosofia e técnica”.
A revista, de periodicidade mensal, apareceu de março de 1941 a outubro de 1945. Durante esse período de cinco anos, foram publicados um total de 53 volumes. Marcus Figueiredo, no estudo citado, sintetiza, assim, a estrutura editorial da revista nos dezoito primeiros números: “a – Problemas políticos e sociais; b – o pensamento político do chefe do governo – divulgação e análise do pensamento de Vargas; c – a estrutura jurídico-política do Brasil – artigos e reportagens sobre as transformações operadas pelo Estado Novo no regime jurídico e político do país; d – o trabalho e a economia nacional – estudos sobre a legislação social e a política econômica do governo; e – política militar e defesa nacional – seção surgida em 1942, refletindo o pensamento do governo sobre os problemas da segurança nacional e, mais especificamente, sobre a guerra; f – a atividade governamental – reportagens sobre as realizações do governo; g – textos e documentos históricos; h – Brasil social, intelectual e artístico – seção das mais importantes, compreendendo editoriais e artigos sobre literatura e artes em geral, usos e costumes, música e folclore, sempre acentuando o papel do Estado Novo no desenvolvimento desses setores da vida nacional”.
A partir do mês de setembro de 1942 (19º número) foi modificada, essencialmente, a estrutura que acabamos de esboçar. Embora tivessem permanecido as diretrizes gerais, não voltaram a aparecer análises sistemáticas sobre o pensamento de Getúlio, nem a seção Brasil Social, Intelectual e Artístico.[4]
II – As ideias de Almir Bonfim de Andrade.
Almir Bonfim de Andrade (1911-1991),[5] formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela antiga Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, foi o fundador, em 1941, da Revista Cultura Política, a convite do jornalista Lourival Fontes (1899-1967), diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Almir de Andrade estava estreitamente ligado à visão centralizadora e modernizadora do país, que empolgava a Getúlio Vargas. Em 1939, de forma pioneira, tinha inaugurado a primeira cadeira de psicologia, em nível de ensino superior, na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Entre os anos de 1941 a 1944 exerceu a cátedra de Direito Constitucional na antiga Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil.
Almir de Andrade rejeitava a ideia revolucionária, mas também era contra o imobilismo social. A respeito, escrevia no editorial do primeiro número de Cultura Política: “O arbítrio humano não pode modificar o que, por qualquer causa, ainda não é socialmente modificável. Mas, também, não podemos impedir que as instituições se modifiquem e renovem, quando a sua própria história indica um novo rumo, quando a própria vida impõe novas tendências adaptativas e novas diretrizes para o futuro. Hoje, parece que vivemos um momento desses. O mundo convulso, numa das crises mais tremendas da história, espera por algo de novo, que dê mais humanidade ao Estado, melhor assistência social às populações, maior amparo e dignidade à personalidade humana”.[6]
O caminho para materializar essa ordem social mais justa e coesa, no Brasil, não seria, certamente, para Almir de Andrade, o da democracia liberal, já falida. Longe da visão abstrata e individualista desta, a nova democracia deveria se alicerçar num processo real de dignificação das pessoas, através da proteção ao trabalho. “A democracia – frisava Almir de Andrade, no editorial do 1º número de Cultura Política – é um ideal de solidariedade humana, de respeito ao trabalho e aos frutos do trabalho, de lealdade e sinceridade na cooperação de todos os homens para o bem comum, sem distinções de privilégios, nem de raças, nem de classes, nem de fortunas”.
Essa dignificação do trabalho implicava, para o Diretor da Revista, uma concepção de democracia social, cuja grande finalidade fosse a materialização da solidariedade econômica. Somente, assim, tornar-se-ia possível a realidade do ideal da justiça social. A finalidade do convívio democrático não podia ser, portanto, a liberdade individual; esse convívio, ao contrário deveria estar dirigido a “(…) garantir a expansão socialmente útil da personalidade humana, distribuir os bens sociais na medida das capacidades e necessidades de cada um, assegurar a ordem para a melhor eficiência do trabalho, fortalecer os vínculos da solidariedade econômica, afetiva e moral entre os indivíduos e as classes, disciplinar as forças econômicas e políticas para que não proliferem os individualismos e possa haver, entre os homens, maior justiça, equidade, respeito e compreensão mútua”.[7]
A materialização desse ideal democrático só se tornaria possível, segundo Almir de Andrade, mediante “(…) a aproximação cada vez maior entre o governo e o povo, entre o Estado e o homem comum”, de acordo com o que afirmara no editorial citado. A grande obra de renovação ensejada pelo Estado Novo teria sido a de conduzir a nação a essa almejada unidade, da qual se derivaria um processo de ajustamentos que implicavam renúncias e concessões individuais, ”em benefício da comunhão material e espiritual”.
A política, nesse contexto de unidade ensejada a partir da aproximação entre Estado e povo, deixaria de ser “(…) aquele campo estéril onde se debatiam facções, se armavam conluios e se planejavam assaltos às posições de mando”, para se tornar “a expressão superior de organização de uma cultura popular, em toda a sua pujança, espontaneidade e realismo”.[8] A ordem política não podia, portanto ser considerada mais como desligada da cultura do povo. Pois nenhuma das manifestações culturais dele “(…) subsistiria sem a garantia de uma organização capaz de manter a paz, de conciliar interesses, de harmonizar tendências, de ajustar as necessidades de cada um às exigências de todos”.[9]
Paralelamente, uma política realista não poderia ignorar a riqueza e as variadas formas de cultura popular. “Compreendemos, agora – frisava Almir de Andrade – que existe, entre a cultura e a política, um traço vigoroso de união. A cultura põe a política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes da inspiração popular. A política empresta à cultura uma organização, um conteúdo socialmente útil, um sentido superior de orientação para o bem comum. Cultura e política são, por isso mesmo, indissociáveis: toda política verdadeira e sadia deve ser uma expressão da cultura popular, assim como toda cultura verdadeira e fecunda deve ter um sentido político, deve conter uma aspiração de integrar-se na vida organizada que a política representa, como cristalização da ordem social”.[10]
A obra Cultura Política e o Pensamento Autoritário (seleção de textos e Introdução, da minha lavra), foi encaminhada, em 1984, a Almir de Andrade (meu confrade na Academia Brasileira de Filosofia, no Rio de Janeiro). Cito, na íntegra, a resposta que me deu o Fundador e Diretor da Revista Cultura Política, em 10 de outubro desse ano: “Prezado confrade Ricardo Vélez Rodríguez, rua Fábio da Luz, 110/403 – Meier, Rio de Janeiro. Cordiais saudações. Acuso o recebimento dos dois livros de sua autoria, que teve a amabilidade de me oferecer: Castilhismo, uma filosofia da República, e Cultura Política e o Estado Autoritário. O primeiro, que já acabei de ler, é valiosa pesquisa – feita, ao que eu saiba, pela primeira vez, onde o direito confronto das quatro figuras de políticos gaúchos que tanto influíram na vida nacional, Castilhos, Borges, Pinheiro Machado e Getúlio Vargas, – nos traz expressivos esclarecimentos para a boa compreensão dos seus temperamentos e atitudes, sobretudo de Getúlio Vargas, em torno do qual ainda se propalam juízos incorretos e injustos. Os que tivemos com ele contato pessoal podemos confirmar que, até o fim da vida, foi sempre o estadista que só colimava o bem público, totalmente despido de ambições e de interesses materiais, e cujo único apego ao poder resultava apenas do desejo e da certeza de poder dar continuidade às suas virtudes inatas de civismo, justiça e equidade. Quanto ao segundo, eu já o havia lido em fins do ano passado, quando um amigo meu de Brasília me enviou um exemplar, depois de tomar conhecimento do artigo que publiquei no nº 79 da Revista do Senado (cuja separata figura entre as que lhe remeti), contando toda a história das origens, formação e objetivos da revista ‘Cultura Política’, e onde houve omissão de qualquer referência a seu livro. De fato, naquela ocasião, eu ainda não o conhecia, o que é pena, pois, do contrário, ter-lhe-ia feito uma citação especial, não só pelo bom critério da seleção dos artigos nele transcritos, mas também, e sobretudo, pela clareza, segurança e justeza da sua análise interpretativa na Introdução. Com os meus agradecimentos, subscrevo-me, ao seu inteiro dispor – (assinado) Almir de Andrade”.[11]
III – Papel desempenhado por Cultura Política no seio do Estado Novo.
Nesse contexto de integração das manifestações culturais “na vida política organizada”, Almir de Andrade entendia o papel a ser desempenhado pela Revista Cultura Política. A respeito, frisava: “Despertar, robustecer, dilatar essa consciência política que precisa existir em todo esforço de cultura – é uma das finalidades desta Revista. Se ela procura espelhar o Brasil sob todas as suas faces – sociais, intelectuais e artísticas -, é para testemunhar que essa consciência já vai surgindo, como resultante da evolução da nossa mentalidade social”.[12] Fora do campo de abrangência da Revista ficavam as tendências que fugissem a essa visão de democracia social, sob a tutela do Estado. Suposta a opção autoritária básica, a publicação estado-novista abria-se a todas as correntes compatíveis com aquela.
Podemos perguntar, a esta altura, se Cultura Política era um órgão de doutrinação (propaganda), ou se constituía um fórum destinado a obter um certo consenso. Do que temos analisado a partir dos escritos de Almir de Andrade, bem como da variada gama de colaboradores da revista, achamos que se tratava da tentativa de obtenção de consenso político, num esforço que levava em consideração as diferentes correntes autoritárias suscetíveis de serem cooptadas pelo Estado Novo. Essa hipótese implicaria na disposição dos Castilhistas (Getúlio à frente) de ouvir a argumentação das outras correntes autoritárias. A verdade é que, em Cultura Política, quem menos aparecia eram os Castilhistas, muito provavelmente em decorrência do esvaziamento sofrido pelo grupo que integrou a Segunda Geração, com a saída do governo, em 1932, dos gaúchos que acompanharam Getúlio na Revolução de 30 (Lindolfo Collor e João Neves da Fontoura foram os principais deles).
Uma questão deve ser respondida: qual era o papel desempenhado pelas ideias corporativistas em Cultura Política e no contexto mais largo do Estado Novo? Aparentemente, o peso do ideário corporativista deveria ter sido muito grande, pois a Carta de 1937, elaborada por Francisco Campos (1891-1968), contemplava uma organização corporativista da economia, com reflexos na própria estrutura política do país.[13] Paradoxalmente, com as ideias corporativistas acontece, no Estado Novo, o mesmo que tinha acontecido, anos atrás, durante a campanha da Aliança Liberal (1929-1930) e também durante o Governo Provisório (1930-1934), com as ideias liberais: o castilhismo em ascensão as cooptou, aproveitando o élan estatizante e esquecendo aquilo que entrasse em atrito com a proposta centralista e modernizadora de Getúlio. O corporativismo foi amplamente adotado na estrutura sindical getuliana. Mas, em outros parâmetros, as coisas ficaram a meio caminho. Como a organização corporativista implicava numa “medievalização” do país, com a economia organizada a partir de um conselho de grêmios e corporações, entrando em atrito com o capital estrangeiro e com a preeminência do Poder Executivo, além de cair na ficção romântica de fechar a economia nacional na administração dos recursos naturais, sem dar importância à industrialização, Getúlio deixou os planos de Francisco Campos relegados ao esquecimento. Isso motivou o exílio do estadista mineiro em 1942. A adesão da elite castilhista a uma proposta modernizadora da economia datava de uma década atrás, quando da elaboração da Plataforma da Aliança Liberal.
Devemos lembrar aqui que um traço essencial ao Castilhismo consistia em dar um valor muito relativo aos textos constitucionais, quando não fossem elaborados pelos próprios castilhistas. Como acertadamente frisou o doutor Victor de Britto[14] (1856-1924), referindo-se ao valor que os castilhistas davam aos textos constitucionais elaborados por outros, para eles era claro que “(…) a questão de bem governar ou mal governar não depende das constituições, mas sim dos homens, dos governantes; que mais vale aguentar uma constituição, mesmo defeituosa, ou constituição nenhuma, desde que o poder esteja nas mãos de um homem honesto, patriota e bem-intencionado, do que a mais bela composição escrita do liberalismo mais puro, entregue a um ambicioso, a um degenerado, capaz de rasgá-la no primeiro momento de impulsividade para satisfação de interesses inconfessáveis”.
Esse positivismo jurídico, que levava a reconhecer como única fonte da legalidade o poder estabelecido teria sido a arma com que Getúlio derrotaria, no plano da luta política e das formulações constitucionais, as tendências liberais e autoritárias que lhe fizeram oposição ao longo do período 1930-1945. Submetidos definitivamente os liberais depois do desfecho falido da Revolução Constitucionalista de 32, vencidas as intentonas integralista e comunista, restava ao líder gaúcho submeter, definitivamente, as correntes autoritárias ainda atuantes. Submeteu-as, no entanto, aproveitando o que de aproveitável havia nas suas propostas: a defesa do regime centralizador, sem cair, porém, na armadilha “medievalizante” ensejada pelo corporativismo. Razão tinha José da Costa Porto[15] (1909-1984) quando atribuía a Pinheiro Machado – nós o faríamos com Getúlio – a qualidade de ser o maior constitucionalista prático do Brasil.
O fato inquestionável é que, dos artigos contidos em Cultura Política, são realmente poucos os que tratam da proposta corporativista de Francisco Campos, ao passo que são muito mais numerosos os que se referem à necessidade de instaurar um Executivo forte e centralizador, que deve ensejar a modernização econômica do país.[16] É bem significativo, aliás, da opção getuliana, em favor do estatismo modernizador e contra a organização corporativista, o editorial escrito por Almir de Andrade, em julho de 1941, comentando os aspectos marcantes da Constituição de 1937. Sob o título de: “Os grandes traços da Constituição de 10 de novembro de 1937”, o editorialista salienta três itens como básicos na Carta estadonovista: a unificação do poder político, a nova organização federativa do Brasil e a nova posição do indivíduo e do corpo social em face do Estado.
Em relação ao primeiro item, frisava Almir de Andrade: “O que a Constituição de 1937 fez, entre nós, foi justamente tornar uma realidade franca e declarada o que, desde quase um século, sempre foi uma realidade insofismável da vida brasileira: a supremacia do Poder Executivo, como meio de realizar a unidade de ação e a coordenação das funções políticas. Era assim, por força de um dispositivo constitucional, no Brasil Império. Continuou sendo assim – embora veladamente, com toda a espécie de disfarces exteriores e hipocrisias políticas – durante a Primeira República. Hoje, lealmente confessamos que só pela unidade do poder, enfeixado nas mãos de um Governo Forte, poderemos levar avante os esforços de reconstrução social e política do Brasil”.
Referindo-se ao segundo item, Almir de Andrade salientava o fato de o Estado Novo ter ensejado a materialização de um federalismo centralizado, que garantisse a unidade nacional e a “centralização de todas as atividades que interessam ao Brasil”, e que permitisse um certo grau de autonomia estadual e municipal, que não entrasse em atrito com o esforço centralizador.
Ao referir-se ao terceiro item, o editorialista fazia abstração da proposta corporativista de Francisco Campos, limitando-se a frisar que foram abandonados “(…) os velhos preconceitos liberais, que levavam o culto ao indivíduo e à liberdade individual ao extremo de poderem eles contrapor-se aos grandes e legítimos interesses sociais. Reconhecemos, hoje, que o Estado é, essencialmente, uma expressão social, um produto de necessidades sociais. Procuramos substituir as palavras vazias da igualdade puramente ‘formal’ da liberal-democracia pelas realidades de uma verdadeira democracia econômica e cultural (…)”.
A visão corporativista de Francisco Campos foi descartada, em suma, pelo getulismo, em virtude dos elementos não modernizadores que pressupunha. A ideia do estadista mineiro de que “O Estado assiste e superintende, só intervindo para assegurar os interesses da Nação, impedindo o predomínio de um determinado setor da produção, em detrimento dos demais”,[17] implicava numa perda da preeminência do Estado forte e modernizador da tradição castilhista. Talvez agisse, no corporativismo de Francisco Campos, o lastro não modernizador da evolução econômica de Minas Gerais, região identificada, por Simon Schwartzman,[18] como de tipo tradicional, junto com a antiga área de cana-de-açúcar do Nordeste. “(…). A exaustão das atividades mineradoras – frisa Schwartzman – ocorrida por volta da segunda metade do século XVIII, deixou a província com a maior população do país, localizada sobretudo nas concentrações urbanas e desprovida de uma atividade econômica importante, de alta lucratividade. Um outro remanescente foi a estrutura burocrática da administração colonial, e esse é, muito provavelmente, o berço da vocação política de Minas Gerais”.
IV – A questão da modernização do Brasil e a prevalência do Castilhismo entre as correntes autoritárias.
Em termos weberianos, para Vargas era inaceitável a ideia de um Estado patrimonial modernizador que entregasse às corporações o aspecto fundamental da administração da economia. Isso equivaleria, no mínimo, a um retrocesso que fortaleceria, de novo, a ascensão dos interesses particularistas.
O Estado getuliano deglutiria, no entanto, a ideia corporativista, libertando-a do vezo romântico ínsito na proposta de uma economia administrada organicamente pela Nação e inserindo-a no contexto do Poder Central forte e modernizador. O modelo sindical que se consolidou, ao ensejo da legislação trabalhista getuliana, assumiu essa ideia, fazendo dos sindicatos peças da engrenagem controlada pelo Estado. Parte importante desse esforço de reinterpretação, no contexto do Estado intervencionista e modernizador, coube a Oliveira Vianna (1883-1951) que, na sua obra Problemas de Direito Corporativo,[19] publicada em 1938, já deixava entrever essa posição.
De outro lado, o Estado getuliano incorporaria, também, a preocupação de Francisco Campos em prol da educação das massas, inserindo-a no contexto castilhista (e, a fortiori, positivista) de incorporação do proletariado à sociedade. Tal preocupação, aliás, inspirou a criação dos Ministérios dos Negócios da Educação e Saúde Pública, e do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1930. Para Getúlio, não se trataria já de educar as massas para que pudessem, através das corporações, competir com o Estado na administração da economia. Tratava-se, sim, de preparar os quadros técnicos, bem como os operários necessários à modernização da economia do país.
Longe de mitigar a ideia (originária do patrimonialismo modernizador de Pombal) de o Estado intervencionista se tornar empresário, Getúlio insistiria nela, para fazer surgir a indústria siderúrgica, base do ulterior processo de industrialização. Essa proposta, aliás, constava já da Plataforma da Aliança Liberal. Para se impor à maré privatista, herdada da República Velha, só restava a Getúlio reviver a tradição castilhista: a racionalização da economia só seria possível num contexto de forte intervenção do Estado na economia, tornando-se ele próprio empresário.
A variedade de posições que, no seio do contexto autoritário, apresenta a revista Cultura Política testemunha, de um lado, que o Estado getuliano não pretendeu, em momento algum, ensejar um processo totalizante. De outro, ilustra a “racionalidade administrativa variável” que Karl Wittfogel[20] (1896-1988) identificou como característica dos Estados patrimoniais: suposta uma meta a ser atingida – no caso getuliano, a racionalização da economia e a estruturação modernizadora do aparelho do Estado – abre-se uma alternativa para a administração centralizadora do dissenso. O castilhismo testou, com sucesso, ao longo de mais de três décadas, o método da consulta plebiscitária. No caso de Cultura Política, a revista agiria como fórum em que se debatiam as propostas surgidas dos diferentes agrupamentos políticos, dando ao Executivo forte, como diria o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), “maior liberdade de ação para concretização dos seus próprios objetivos políticos”,[21] manobra que poderia ser caracterizada como fruto do “autoritarismo instrumental”, tematizado por Wanderley-Guilherme dos Santos[22] (1935-2019).
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NOTAS
[1] Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. (Seleção de textos e Introdução). Cultura política e o pensamento autoritário. Brasília: Câmara dos Deputados / Centro de Documentação e Informação, 1983, 692 pág.
[2] FIGUEIREDO, Marcus. “Cultura Política: revista teórica do Estado Novo”. In: Revista Dados, Rio de Janeiro, (4): 221, 1º semestre 1968.
[3] Cf. VERÍSSIMO, Inácio José, coronel. Introdução ao estudo da estratégia. Rio de Janeiro: Bedeschi, 1944.
[4] FIGUEREDO, Marcus. Art. cit., p. 222.
[5] Os principais escritos de Almir de ANDRADE foram os seguintes: A verdade com Freud (Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1933); Da interpretação na psicologia (Rio de Janeiro: José Olympio, 1936); O direito de propriedade: sua evolução histórica e estado atual (Tese de Concurso, Rio de Janeiro: 1936); Aspectos da cultura brasileira (Rio de Janeiro: Schmidt Editora, 1939); Força, cultura e liberdade: origens históricas e tendências atuais da evolução política do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio, 1940); Os primeiros estudos sociais no Brasil: séculos XVI, XVII e XVIII – Formação da sociologia brasileira, I (Rio de Janeiro: José Olympio, 1941, coleção Documentos Brasileiros); “Evolução dos estudos sociais” (ensaio publicado na revista Cultura Política, Rio de Janeiro, números 34 / 36, 1943 / 1944); Diretrizes da nova política do Brasil (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943); Duas irmãs (romance, Rio de Janeiro: José Olympio, 1944); “Uma análise da psicanálise à luz da fisiologia e psicologia contemporâneas” (ensaio publicado na revista Brasil Médico, Rio de Janeiro, ano 63, nº 22, maio de 1949), Contribuição à história administrativa do Brasil, na República, até o ano de 1945 (Rio de Janeiro: José Olympio, 1950, 2 volumes), Suplemento brasileiro à pequena Enciclopédia de Conhecimentos Gerais, volume IV, Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1950); O Capital através das doutrinas econômicas (1ª edição, Rio de Janeiro: Borsoi, 1953; 2ª edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1959); “Swift: sua obra e sua época” (Prefácio à tradução brasileira das Viagens de Gulliver, Separata do vol. XXXI dos “Clássicos Jackson”, Rio de Janeiro, 1955); Alexandre Rodrigues Ferreira e a introdução do método científico nos estudos sociais do Brasil, Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1958); “O Direito constitucional e a ordem social” (ensaio publicado na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, ano III, nº 11, Brasília, 1966); As duas faces do tempo: ensaio crítico sobre os fundamentos da filosofia dialética (São Paulo / Rio de Janeiro: EDUSP / José Olympio, 1971); O Capital nos sistemas econômicos (Rio de Janeiro: Editora Rio, 1973); Lições de direito constitucional (Rio de Janeiro: Editora Rio, 1973).
[6] ANDRADE, Almir Bonfim de. “A evolução política e social do Brasil”. Editorial do número 1 da Revista Cultura Política. Rio de Janeiro: Divisão de Imprensa e Propaganda, março de 1941.
[7] ANDRADE, Almir Bonfim de. Editorial citado.
[8] ANDRADE, Almir Bonfim de. “Política e Cultura”. Cultura Política, Rio de Janeiro, nº 2, abril de 1941.
[9] ANDRADE, Almir Bonfim de. “Política e Cultura”. Art. cit., ibid.
[10] ANDRADE, Almir Bonfim de. “Política e Cultura”, Art. cit. ibid.
[11] ANDRADE, Almir Bonfim de. “Carta de Almir de Andrade a Ricardo Vélez Rodríguez”, Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1984. In: Arquivo Pessoal de Ricardo Vélez Rodríguez.
[12] ANDRADE, Almir Bonfim de. “Política e Cultura”, art. cit.
[13] Os traços fundamentais de tal proposta corporativista foram tratados, de maneira sistemática, por Francisco Martins de Souza, (organizador), na obra: O Estado nacional e outros ensaios de Francisco Campos. (Introdução de F. M. de Souza). Brasília: Câmara dos Deputados, 1983 .
[14] BITTO, Victor de. Gaspar Martins e Júlio de Castilhos – Estudo crítico de psicologia política. Porto Alegre: Livraria Americana, 1908, p. 48-49.
[15] PORTO, José da Costa. Pinheiro Machado e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.
[16] Fizemos uma classificação dos artigos que apareceram em Cultura Política, do ponto de vista do seu conteúdo autoritário. O resultado foi o seguinte: A – artigos que defendem a ideia de um Estado forte e centralizador (14). B – Artigos que defendem a ideia de uma modernização da economia feita pelo Estado intervencionista (7). C – artigos que defendem a ideia de organização corporativista proposta por Francisco Campos (8). Somados os artigos que prescindem da visão corporativista, temos um total de 21 contra apenas 8 que a sustentam.
Os artigos arrolados no grupo A são os seguintes: 1 – ANDRADE, Almir de, “A evolução política e social do Brasil” (nº 1, 1941). 2 – CARVALHO, Menelick de, “O atual regime dos municípios”, (nº 1, 1941). 3 – ARRAIS, Raimundo de Monte, “A influência do poder pessoal na unidade política do Brasil”, I (nº 1, 1941). 4 – TEIXEIRA, Aloisio Maria, “A Constituição de 10 de novembro de 1937”, (nº 1, 1941). 5 – ARRAIS, Raimundo de Monte, “A influência do poder pessoal na unidade política do Brasil, II, (nº 3, 1941). 6 – PEIXOTO, Silvio, “Tradição política do princípio de unidade nacional”, (nº 3, 1941). 7 – ANDRADE, Almir de, “O Brasil e a centralização do governo”, (editorial), (nº 4, 1941). 9 – VERÍSSIMO, Inácio José, “Aspectos da nossa organização política”, (nº 4, 1941). 10 – CASASSANTA, Mário, “Executivo forte, tendência nacional”, (nº 6, 1941). 11 -ARRAIS, Raimundo de Monte, “A influência do poder pessoal na unidade política do Brasil”, III, (nº 8, 1941). 12 – SIMAS, Henrique de Carvalho, “Novos rumos do direito constitucional brasileiro”, (nº 10, 1941). 13 – BASTOS, Reinaldo, “A centralização administrativa do Estado Nacional”, (nº 11, 1942). 14 – ANDRADE, Almir de, “A independência e a unidade do Brasil”, ( nº 19, 1942).
No grupo B entram os seguintes artigos: 1 – CALLAGE, Fernando, ”O passado e o presente da questão social no Brasil”, (nº 1, 1941). 2 – Do mesmo autor, “Clima propício à legislação social”, (nº 4, 1941). 3 – ANDRADE, Almir de, “Democracia social e econômica”, (nº 6, 1941). 4 – LAGOA, José da Rocha, “Siderurgia, viga mestra da economia nacional”, (nº 5, 1941). 5 – MORAIS, Deodato de, “O Estado e sua moderna concepção”, (nº 5, 1941). 6 – ANDRADE, Almir de. “O Programa do Partido Social-democrático”, (nº 51, 1945). 7 – VARGAS, Getúlio, “A organização econômica do Brasil” (Discurso), (nº 45, 1944).
Pertencem ao Grupo C os seguintes artigos: 1 – MOREIRA, João da Rocha, “O Estado Novo e o problema trabalhista”, (nº 4, 1944). 2 – GARCEZ NETO, Martinho, “O direito de propriedade e a Constituição de 1937”, (nº 6, 1944). 3 – CANSADO, Melo, “A tendência, no direito moderno, para a supremacia do direito coletivo sobre o individual”, (nº 29, 1943). 4 – TENÓRIO, Oscar, “A Constituição de 10 de novembro de 1937 e o Parlamento”, (nº 2, 1941). 5 – COELHO, Vicente de Faria, “A organização corporativa brasileira”, (nº 4, 1941). 6 – FILGUEIRA, Roberto, “Conceito de economia brasileira”, (nº 21, 1942). 7 – ARRAIS, Raimundo de Monte, “Aspectos da Constituição brasileira”, (nº 32, 1943). 8 – MENEZES, Djacir, “A economia corporativa e o meio social brasileiro”, (nº 33, 1942).
[17] Cf. Introdução, já citada, de Francisco Martins de Souza aos escritos de Francisco Campos.
[18] Cf. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro, 1ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1982, pgs. 26 seg.
[19] Cf. VIANNA, Francisco José de Oliveira, Problemas de Direito Corporativo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p. 62, seg. Evaldo Amaro VIEIRA, na sua obra: Oliveira Vianna e o Estado corporativo (São Paulo: Grijalbo, 1976, p. 32 seg.) mostra, detalhadamente, a forma em que o sociólogo fluminense realizou essa interpretação mais elástica do corporativismo. Cf., a respeito: VIANNA, Francisco José de Oliveira, Problemas de Organização e problemas de direção, (Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, p. 111).
[20] Cf., p. 137.
[21] Cf. p. 37.
[22] Cf. SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979. Do mesmo autor, Ordem burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 106. Do mesmo autor, Poder e Política: Crônica do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978, p. 175.