O "isentão" é aquele que, normalmente, banca o imparcial, desprovido de preconceitos ideológicos, que pensa apenas de forma "técnica", e que está acima dessa disputa "infantil" e "ultrapassada" entre direita e esquerda. Ele faz essa pose de superior, mas, no fundo, bate forte aquele coraçãozinho de esquerda.
Já escrevi textos sobre os "isentões", mas deixei de lado o tema por conta do abuso do termo por parte de bolsonaristas. Eles passaram a chamar qualquer um que não aderisse totalmente ao bolsonarismo de "isentão", como se na disputa política e na guerra cultural em curso houvesse apenas duas escolhas possíveis. Tal pensamento binário e tribal é pobre e oportunista. Ou seja, é perfeitamente possível ser liberal ou conservador e rejeitar o bolsonarismo, ou os excessos bolsonaristas, sem se tornar um "isentão" típico.
E vou usar como exemplo de uma evidente postura de "isentão" o caso da jornalista Miriam Leitão, para mostrar como isso nada tem a ver com o direitista que recusa o fanatismo bolsonarista. Em seu texto de hoje sobre a Bolívia, Miriam Leitão dedicou mais espaço para atacar o governo Bolsonaro do que para repudiar a tentativa de golpe de Evo Morales. A necessidade de sempre detonar a direita quando se critica a esquerda é algo bem sintomático do "isentão". E nas entrelinhas fica claro que o ódio mesmo é pela direita. Diz ela:
O Brasil poderia em outra situação participar da negociação não só para a viagem de Evo, como estimular esforços da Bolívia para uma saída constitucional. A diplomacia brasileira já solucionou conflitos na região, sendo o polo da moderação. Mas isso foi há muito tempo. Entrou por uma linha ideológica nos governos do PT e agora foi para a linha oposta, e ainda mais radicalizada.
Uau! A diplomacia do atual governo é mais radicalizada ainda do que a petista, que colocou o Mercosul numa camisa de força ideológica, que delegou ao Foro de São Paulo todo o poder, que decidiu arbitrariamente criar o eixo sul-sul alimentando o antiamericanismo infantil? O atual governo está alinhado aos Estados Unidos e Israel, enquanto PT se alinhava a Hugo Chávez e Ahmadinejad, além das ditaduras corruptas comunistas africanas. Mas hoje há mais radicalismo ideológico, segundo Miriam!
O Brasil autorizou que o jatinho do cocaleiro Evo sobrevoasse nosso país, mas Miriam queria mais, queria mediação no "diálogo", a mesma receita que pedem para resolver os problemas venezuelanos até hoje, ignorando que Maduro é um ditador opressor! A jornalista poderia nos explicar o que o "diálogo" fez pela Venezuela até aqui...
Miriam, após usar o caso boliviano como pretexto para detonar a nossa diplomacia, entrou no debate se houve ou não golpe na Bolívia, e concluiu que é uma discussão "ociosa", mas sem deixar de apontar que não foi uma saída "espontânea", ou seja, insinuando que foi mesmo um golpe: "Se os chefes militares se reúnem em frente à televisão para pedir a renúncia de um presidente, evidentemente não é uma saída espontânea. Com a força de suas armas não podem ser contestados".
Ela, em seguida, passa a elogiar o governo de Evo Morales, pelo aspecto econômico e social (fico imaginando se essa turma vai um dia reconhecer os avanços econômicos e sociais chilenos durante o regime de Pinochet), e lamenta apenas o "continuísmo", sem deixar de apontar que ele vem da esquerda e da direita:
Evo Morales conduziu um governo bem-sucedido, com inegáveis avanços econômicos e sociais. Foi o primeiro presidente indígena, depois de todos os anteriores de origem europeia. Fez um forte programa de inclusão. O país cresceu de forma expressiva e reduziu a pobreza. Teria passado à história por seus bons indicadores e boas políticas, não fosse o erro do continuísmo. Se o terceiro mandato já foi conseguido por uma manobra, ao tentar o quarto mandato ele estava flagrantemente desrespeitando a Constituição, escrita em seu governo, e desobedecendo o resultado do referendo de 2016. Todo mundo viu o que o continuísmo chavista fez na Venezuela. Por isso, tanta gente da região tem medo dos projetos continuístas à esquerda ou à direita. Por outro lado, o tipo de liderança carismática e centralizadora de Evo não costuma fazer herdeiros. Esse foi seu erro principal. Em vez de continuar de forma personalista, poderia ter garantido a sobrevivência do projeto formando lideranças robustas no Movimento ao Socialismo (MAS).
Ou seja, o grande erro de Morales foi não ter criado novas lideranças socialistas, ter apostado demais no personalismo e no continuísmo. Só isso! Se ao menos o indígena cocaleiro do Foro de SP tivesse preparado um sucessor!!! Nem vamos contar à jornalista que Maduro é justamente o sucessor de Chávez, e que o fato de ser menos carismático fez com que o regime ditatorial ficassem ainda mais opressor.
Miriam lamenta a instabilidade política na região, as constantes "quarteladas", aproveitando uma vez mais para detonar nossa diplomacia atual e sem destacar a verdadeira causa desses frequentes "golpes" militares: o avanço do populismo autoritário pregado pela esquerda radical, que gera como reação uma demanda popular por ordem:
A série de conflitos e instabilidades na América Latina confirma o estereótipo de uma região de quarteladas, rupturas e quebras de contratos. Isso espanta investidores. O Brasil não ajuda, porque apesar de ser um país gigante do ponto de vista territorial, decidiu apequenar a sua diplomacia. E, mesmo sendo uma democracia, tem um presidente que tem um discurso autoritário.
Num texto em que fala sobre a crise boliviana, sobram ataques ao governo Bolsonaro, e faltam críticas aos socialistas demagogos e totalitários que infestaram o continente e tentaram em diversos países dar golpes desde dentro da democracia, para destruí-la por completo, como ocorreu na Venezuela. A conclusão de Miriam é a típica mensagem do "isentão":
O povo foi para as ruas da Bolívia contra Evo, como está nas ruas do Chile contra Sebastián Piñera. O grande dilema que todos os países enfrentam é como manter as instituições democráticas, reduzir as desigualdades e ter crescimento sustentado e sustentável. Evo Morales chegou ao exílio no México sugerindo que caiu por ser contra o imperialismo. Aqui no Brasil, Bolsonaro diz que luta contra o comunismo. Enquanto líderes de campos opostos brigam contra fantasmas, como se estivessem presos do túnel do tempo, os problemas reais e atuais se agravam.
O "imperialismo" denunciado pela esquerda radical é fantasma, já o comunismo denunciado pela direita não: ele é real, e basta olhar para a Venezuela, para Cuba, para verificar. Temos partidos comunistas no Brasil ainda, esqueceu, Miriam? Temos vários jornalistas e políticos que se inspiram no defunto Fidel Castro, esqueceu? Temos o PSOL e o PT apoiando o regime de Maduro, esqueceu? São fantasmas, Miriam?
O Chile é um país com indicadores macroeconômicos e sociais bem melhores do que a média do continente, sob um governo liberal reformista, com estabilidade institucional, que foi tomado por protestos de baderneiros e radicais, com o apoio dos partidos da extrema esquerda. Não há comparação com o caso boliviano, Miriam, onde Evo Morales tentou dar um golpe primeiro na Constituição, depois nas urnas. Essa comparação é simplesmente absurda, esdrúxula!
Os problemas reais se agravam na América Latina justamente por conta da mentalidade atrasada, da esquerda jurássica, sindicalista ou socialista, e da visão "progressista" de mundo que esgarçou completamente o tecido social, enfraquecendo as famílias tradicionais, criando incentivos perversos por meio do paternalismo estatal, produzindo criminalidade ao tratar marginal como "vitima da sociedade", eximindo indivíduos de responsabilidade.
Ou seja, o buraco é bem mais embaixo do que essa visão "economicista" e "técnica" que faz algumas concessões às reformas liberais econômicas, mas preserva todo o arcabouço "progressista" intacto na questão moral e dos costumes. O "isentão" não permite espaço algum ao conservadorismo. Ele odeia a direita, e mal consegue esconder sua paixão pela esquerda. Engole algumas propostas de Paulo Guedes, mas não aceita sequer discutir sobre aborto, cotas raciais, mudanças climáticas, legalização das drogas, pois se acha "esclarecido", enquanto os conservadores seriam um bando de "alienados tacanhos". São os "liberais" cosmopolitas contra os suburbanos "preconceituosos", esses religiosos cegos, esses evangélicos que ainda levam a Bíblia a sério!!!
Espero, com esse texto, ter deixado bem claro que nem todos que criticam o bolsonarismo são "isentões", ou "nova esquerda", como já tentam agora impor na narrativa patética contra os críticos do governo ou sua ala mais fanática. É perfeitamente possível ser conservador e rejeitar o bolsonarismo. Essa divisão binária, tribal, só interessa aos extremos da polarização. Eu e Miriam Leitão jamais poderemos ser classificados com base no mesmo rótulo ideológico. Não faria o menor sentido...