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O bolsonarismo tem um claro viés autoritário. Ou melhor: há uma ala, bastante próxima do presidente e que inclui seus filhos, que já deu todas as demonstrações de intolerância para com o contraditório. Ela não sabe lidar com críticas, demoniza toda a imprensa, flerta com frequência com soluções "revolucionárias", sente saudades dos tempos do regime militar e alimenta uma militância raivosa que pratica assassinato de reputações nas redes sociais. É a turma influenciada por Steve Bannon e Olavo de Carvalho, representantes do nacional-populismo "iliberal".

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A presença dessa ala no governo é constante fator de incômodo, e já levou muita gente boa, liberal e conservadora, a se afastar de Bolsonaro e se tornar até opositora do presidente. Muitos também desconfiam, por conta desse pessoal, dos reais intuitos de Bolsonaro, que poderia estar apenas usando o liberalismo de Paulo Guedes como instrumento para um projeto amplo de poder. As reformas seriam, nesse sentido, um mecanismo para liberar recursos, produzir crescimento econômico, e sedimentar o clã no poder. Algo como o PT fez no começo do primeiro mandato de Lula, com Meirelles e Palocci. É a tese que Carlos Andreazza sustenta, por exemplo:

A rigor, objetivamente, desconfio do interesse de o bolsonarismo, fenômeno autocrático, investir num programa liberal na economia – algo estrutural, com corpo de longo prazo – para além da geração das condições básicas mínimas para um voo de galinha capaz de assegurar a reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Não será preciso muito... Dado o fosso em que nos afundamos, uma breve reação na curva da geração de empregos faria boa parte do serviço.

Argumento nenhum desmonta a minha suspeita – com alicerce histórico – de que a intenção bolsonarista, nem um pouco original, seja usar o liberal econômico para conquistar alguma descompressão fiscal, algum fôlego para gastar, para fazer obras; e depois: tchau. Não seria novidade. É o que os mais espertos entre os populistas fazem.

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Acho que é um alerta válido e que o seguro morreu de velho. O preço da liberdade é a eterna vigilância, todo liberal e conservador deve ser cético, e conhecendo a essência do núcleo duro do bolsonarismo, e já tendo indícios de seu viés autoritário, todo cuidado é pouco. É preciso criticar os excessos, cobrar explicações, não se deixar seduzir só pelo aspecto econômico.

Mas também é preciso se ater aos fatos com objetividade, separando o que é medida concreta e o que é mera especulação, ainda que com algum embasamento. E a realidade é esta: até aqui, o governo tem seguido numa linha reformista que retira poder e recursos do estado, do governo federal, o que vai à contramão do que seria razoável num projeto autoritário e fascistoide de poder. A palavra-chave do autoritarismo, afinal, é centralização. Isso não bate com a descentralização proposta por Paulo Guedes e chancelada por Bolsonaro.

Privatizar estatais, negar-se a distribuir cargos e ministérios para comprar apoio político, apostar no federalismo, tudo isso soa estranho para quem quer criar um regime centralizador com amplo poder nas mãos do governante. O PT tinha tal projeto de poder, sabia onde queria chegar, e claramente usou a ortodoxia econômica dos primeiros meses como tática para ganhar tempo. Mas logo apelou para o populismo econômico para produzir crescimento rápido e insustentável, voos de galinha. Até aqui, nada parecido no governo Bolsonaro. Ao contrário: o governo segue em sentido anticíclico, ou seja, reduzindo gastos e subsídios, dando mais espaço para a iniciativa privada.

E o ambicioso projeto de reforma do estado apresentado nesta terça foi a joia da coroa nesse aspecto. Uma reestruturação que reduz o poder da União em prol dos estados e municípios, e que usa gatilhos emergenciais para conter gastos públicos e congelar salários dos servidores. Seria um projeto autoritário muito estranho esse, de declarar guerra ao "deep state" em vez de tentar seduzi-lo.

Hoje, todo prefeito e governador é refém do governo federal, que arrecada uns 70% dos impostos. O plano de Guedes e Bolsonaro prevê devolver poder e recursos aos estados e municípios, garantindo mais autonomia e também responsabilidade. Um plano estranho para um projeto autoritário, não? Seria uma espécie de "fascismo descentralizador", um oxímoro, uma contradição em termos.

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Isso sem falar da defesa do direito de o cidadão se armar, algo que vai certamente no sentido contrário de todo projeto autoritário, que sempre busca desarmar a população, para torna-la mais indefesa.

Em resumo, não nego o incômodo com o comportamento, as declarações e o modus operandi da ala ideológica do bolsonarismo. Acho prudente manter a vigilância constante ao que essa turma faz, especialmente nos bastidores. Não acho que é pura paranoia combater isso, coisa de quem procura um "fascismo imaginário". O bolsonarismo já deu sinais de pouco apreço pelas instituições democráticas.

Mas, em nome da honestidade intelectual, considero importante destacar que, o que temos de fatos até aqui, aponta na direção do federalismo, da descentralização, do enxugamento da estrutura do estado. O que não faria o menor sentido para um projeto autoritário de longo prazo.

Imaginar que Bolsonaro está jogando um xadrez 4D de olho lá na frente, e usando Guedes e seu liberalismo de forma pragmática para ganhar tempo, fica parecendo uma teoria um tanto exagerada. Se é esse o caso, trata-se do pior projeto autoritário da história!