Um professor de Filologia Românica que acorda no dia do recebimento de um prêmio, uma medalha de sua universidade, e mergulha em nostálgicas reminiscências enquanto se arruma para a ocasião, remexendo em seu passado em busca de um “sentido para a vida”. Eis o enredo do novo livro de Cristovão Tezza, O professor, que devorei no fim de semana.
Não tinha lido nada de Tezza ainda, inclusive seu livro mais famoso, O filho eterno, vencedor de inúmeros prêmios. Comecei pelo último, e gostei muito, o que certamente me levará aos outros. Trata-se de excelente literatura, do tipo que enriquece nossas vidas. Alimento da alma.
A figura do narrador, alternando a primeira e a terceira pessoa, alternando o relato presente com suas memórias que vão desvendando uma vida um tanto trágica, permite ao leitor uma intimidade interessante, sem com isso cair no sentimentalismo. Acompanhamos o esforço do professor Heliseu em dar – ou tentar dar – algum sentido à sua vida, com suas duas experiências amorosas, a mulher e a jovem amante, seu filho gay que não lhe tem afeto algum, e a morte da esposa – acidental ou homicídio?
Tezza fala do poder das pequenas escolhas em nossas vidas. “Vamos fixar esse momento, colegas, porque são instantes raros assim, que, apenas uma única vez, acontecem com todo mundo; momentos de uma insossa banalidade, mas que mudam nossa vida para sempre”. E quem não tem tais momentos frescos na memória? E quantos ainda não vamos experimentar?
Tudo isso regressando no tempo, trazendo à tona fatos históricos e a passagem de uma era, com todas as mudanças que isso acarretou. Sendo Heliseu um “reacionário”, claro que o livro é repleto de passagens mais políticas que eu, obcecado pelo tema, achei deliciosas. O “amigo” do cafezinho da universidade, o típico esquerdista “revolucionário”, merece as melhores bordoadas. Podemos pinçar trechos assim:
Como a tal Bolsa Família, que diminuiu a desigualdade social – e seus efeitos colaterais, senhores, a perenização da esmola?
O século XX foi, com toda razão, o século das vítimas. Por onde quer que se andasse, montanhas de vítimas. Algumas terraplenadas nuas e secas em covas coletivas. Outras gordas e bem nutridas: vítimas. Vítimas armadas e vítimas desarmadas. Todos vítimas. A maior hipertrofia de vítimas da História da Humanidade. A vontade própria, essa birra adolescente, ou a escolha, esse anacronismo bíblico, ou o livre arbítrio, essa excrescência filosófica, tudo se refugiou mais abaixo que os subterrâneos. Vítimas por toda parte. Dava até pena. Aqueles dois andando de moto – Easy Rider, lembrei o nome do filme – também eram vítimas, e por isso saíam por aí desprezando o mundo e fumando maconha. Vítimas da sociedade, era assim que se dizia naquele tempo.
[…] e nunca fui a reunião alguma, vagamente tentado e vagamente temeroso dos jovens comunistas da universidade organizando seus aparelhos e dissidências, precocemente sérios, já velhos aos 20 anos.
[…] ele era apenas um idiota perigoso com uma arma escondida no casaco com a qual mudaria o mundo, Venha na reunião, onde talvez se encontrasse com Dilma Rousseff no Comando de Libertação Nacional – Colina, que belo nome, a luta continua, companheiros! – para anos depois se tornar, ele um cadáver desaparecido, ela uma presidenta, que nome horroroso, alguém que só pela barbárie lexical que escolheu para ser chamada, pela dissonância riscante do presidenta, um som que dói no ouvido, alguém sem sensibilidade para a sonoridade da própria língua que fala, presa na arrogância travada de seu idioleto, só por isso testemunhava o seu curto limite, um bloco de anacolutos, e no entanto haveria de ser, milagrosa, anos depois, à cabeça do pior governo brasileiro dos últimos 30 anos […]
O Brasil sempre foi um refinado sonho francês, um croissant utópico.
Como não apreciar tais passagens? Em sua resenha para a Veja, Sérgio Rodrigues escreve: “Com esses fios, cada vez menos desconexos, Tezza tece com vagar, sutileza e precisão uma tapeçaria cheia de desalento sobre o tema recorrente da queda – das consoantes, de diversos personagens e do próprio país. É difícil resistir ao trocadilho com o título: um livro de mestre”. Assino embaixo.
Rodrigo Constantino