O programa do Globo Repórter dessa sexta foi sobre felicidade. A forma com a qual o assunto foi tratado me incomodou profundamente. Havia clara confusão entre felicidade genuína e uma espécie de satisfação bovina, gargalhadas vazias, sensação artificial de bem-estar induzida por remédios ou fugas hedonistas. Isso é o mesmo que felicidade?
Um dos convidados do programa foi Eduardo Giannetti da Fonseca, que tem um livro chamado Felicidade. Era uma das vozes mais sensatas ali. No livro, Giannetti diz:
A expectativa dos iluministas era de que as três pernas do tripé (domínio da natureza, perfectibilidade humana e governo racional) caminhassem pari passu e, à medida que avançassem, nos levassem a passos firmes à tão sonhada era da felicidade…
Tal promessa iluminista está fadada ao fracasso. É o alerta que tantos conservadores fizeram e ainda fazem. Podemos dominar técnicas cada vez mais modernas de controle da natureza, podemos aperfeiçoar um pouco os costumes humanos, mas jamais teremos uma perfeição da natureza humana, um governo totalmente racional. A moral humana não experimenta um progresso do mesmo tipo do material das sociedades capitalistas e industriais.
Essa lembrança sempre foi importante para conservadores. O mito do pecado original, a ideia de que somos imperfeitos por natureza e condenados a carregar em nós a potência do mal, que jamais seremos anjos ou máquinas totalmente racionais (ainda bem!), tudo mostra que essa busca não passa de uma utopia. Compare-se a isso a Venezuela socialista com seu Ministério da Felicidade!
Freud com seu alerta sobre o mal-estar na cultura é outra fonte importante para não cairmos nessa falácia de “felicidade para todos”, uma felicidade plena na vida comunitária. Isso não existe. Isso não é possível. Reconhecer isso é fundamental para preservarmos as liberdades individuais que tornam possível algum grau de felicidade subjetiva na vida, que jamais será garantido ou permanente.
Não é tarefa trivial. Perdemos na largada quando tomamos consciência da nossa finitude, de que vamos perder nossos entes queridos, de que somos arrebatados por doenças e tragédias imprevisíveis. Não quero, com isso, enaltecer uma “ética do sofrimento”, com tom melancólico. É justamente a noção de que a vida é efêmera que dá alto valor a ela, e devemos celebrar isso.
Mas não confundindo felicidade com um estado pleno e constante de espírito, com alguma promessa irreal de que estaremos sempre felizes, por meio de fugas hedonistas, de uma busca desenfreada por prazer. Os que mergulham nessa caem em um paradoxo: por não aceitarem a realidade como ela é, ficam viciados na “busca pela felicidade” e cada vez precisam de mais coisas e mais sensação momentânea de prazer, sem, com isso, livrar-se da infelicidade que assola e oprime.
o livro de Giannetti é dividido em quatro encontros com diálogos entre perfis diferentes. No último, ele coloca a questão da pílula da felicidade. O tema é bastante atual quando lembramos da quantidade de gente que busca nos remédios a “felicidade”. Prozac, Rivotril, drogas em geral, são todas variações do soma de Huxley em Admirável Mundo Novo. Giannetti pergunta por meio de um personagem:
Se o caminho da reflexão e da intenção subjetiva não dão conta do desejo de reduzir o fardo de uma autoconsciência que pesa e faz sofrer, por que não tomar o atalho da intervenção objetiva por meio da manipulação tecnológica?
O ser humano sempre deu um jeito de encontrar alguns entorpecentes para fugir da dura realidade. O álcool, as drogas, as pílulas. Mas é preciso lembrar do alerta feito pelo autor:
Os momentos de exuberância subjetiva e da intensa felicidade são por natureza fugazes. Se todo dia é carnaval, acabou o carnaval. A garota de Ipanema é, por definição, a “que vem e que passa”, jamais a que fica.
O “prazer perpétuo” é uma utopia. Só se pode obtê-lo à custa de deixar de ser humano. Alguém tomaria a pílula vermelha do Matrix, para continuar na fantasia? Se o fizesse, seria um autômato, um “alegrinho”, um “inseto hedonista e saciado”. Não é assim que ficam toda essa happy people?
Nem preciso dizer que quem procura essa rota está à contramão da liberdade. Liberdade não combina com “felicidade” artificial. Volto ao admirável mundo de Huxley para fechar, deixando o Administrador explicar para o Selvagem o que está em jogo:
O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes, por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se postar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Da liberdade!
Mustafá Mond riu. Nós choramos, quando pensamos que Huxley foi profético e que cada vez mais gente troca liberdade por aparência de felicidade, troca Shakespeare por hedonismo, troca as paixões violentas pela tranqüilidade bovina, troca a incrível angústia de estar vivo e consciente pela morte antecipada de quem já abandonou a humanidade em busca de uma ilusória segurança. Estão mesmo felizes?