Com o clima tenso na Ucrânia e o risco iminente de uma invasão russa, resolvi resgatar alguns textos antigos que escrevi na época em que acompanhava o país (Rússia) mais de perto, por conta do meu trabalho.
Já mostrei aqui como a tradição patrimonialista ajudou a construir um país que não dá muito valor às liberdades individuais. Agora, pretendo contar um pouco mais a história do surgimento de Putin como presidente escolhido pelos oligarcas, apenas para destruí-los em seguida.
Talvez ajude a compreender melhor a mentalidade predominante por lá e o perfil de Putin, seu “czar” atual. Um sujeito que aos 32 anos chega a importante cargo dentro da KGB não pode ser flor que se cheire, e seria bom o presidente americano Barack Obama, o rei da retórica vazia, saber com quem está lidando. Lá vai:
A herança da KGB
“History may not repeat, but it often rhymes” (Mark Twain)
Durante a fase de transição da URSS comunista para a Rússia semi-capitalista, ocorreu um verdadeiro vácuo de poder. Yeltsin defendeu bravamente sua nação da ameaça do retorno comunista, nada desprezível. Sua frágil saúde, assim como o ainda grande apoio popular aos comunistas, levaram a momentos de pânico para os defensores da liberdade, como na tentativa de golpe combatida por tiros no Kremlin. Foi nesse contexto conturbado que um agressivo programa de privatizações começou, liderado por Anatoly Chubais. O objetivo era claramente dificultar a volta do comunismo, e por isso o programa foi realizado às pressas, antes de reformas profundas que determinassem regras mais claras para o jogo.
Neste processo, os oligarcas conseguiram criar verdadeiras fortunas do dia para a noite. Foram distribuídos vouchers para toda a população, que seriam utilizados como moeda nos leilões de privatização. Com total assimetria de informações e conhecimento de economia, sem falar de uma forte demanda reprimida pelos anos do comunismo, a população vendeu por qualquer preço os tais vouchers, enquanto os filhos da nomenklatura acumulavam verdadeiras fortunas. Tratava-se de um verdadeiro jogo de cartas marcadas, e os influentes foram capazes de assumir o controle de grandes empresas por preços irrisórios, sem competição. Chubais teria entregue os ativos russos para poucos oligarcas a fim de salvar seu país do comunismo.
Em 1999, era eleito para a presidência do país Vladimir Putin, um ex-diretor da KGB. Meses antes das eleições, ninguém ouvira falar de Putin, até que Yeltsin o designou ao cargo de Primeiro Ministro. Um grupo de sete oligarcas, liderados por Boris Berezovsky, iria garantir a vitória deste que passava a representar os interesses da “Família”, ligada a Yeltsin. O principal oponente, Yuri Luzhkov, o todo poderoso prefeito de Moscou, seria devidamente “destruído” politicamente, com a ajuda dos meios de comunicação em mãos dos oligarcas. Vladimir Gusinsky, o oligarca mais poderoso dentro da mídia, foi o grande responsável por essa estratégia. Putin seria eleito sem problemas.
Com poucos meses de poder, Putin começou a mostrar sua herança dos tempos de KGB. Acreditando que a TV pode fazer ou destruir um político, ele voltou rapidamente suas energias para esta direção. Como as operações militares na Chechênia iam muito mal, levando à perda de popularidade, Putin declarou guerra a Gusinsky, cuja rede de TV fazia uma cobertura imparcial do evento. Não disposto a ceder, Gusinsky chegou a ir preso, e depois de muitas ameaças, optou pelo exílio. Caía o primeiro grande oligarca que ajudou a colocar Putin no poder, ao mesmo tempo que este mostrava sua verdadeira personalidade.
Berezovsky entendeu a ameaça do Kremlin, mas decidiu brigar. Também dono de canais de mídia, ele seria o próximo alvo de Putin. Aquele que praticamente criou Putin do nada se via agora forçado a se exilar também. Até hoje encontra-se em Londres [morreu lá em março de 2013]. Em poucos meses de governo, a televisão na Rússia passaria a ser totalmente estatal, e Putin podia agora dormir tranquilo.
Ou nem tanto assim. Para atrapalhar seu sono, o mais rico de todos os oligarcas, Mikhail Khodorkovsky, o principal acionista da Yukos, decidiu trilhar seu caminho pela política. Com cerca de US$ 10 bilhões de patrimônio, dinheiro não seria problema algum. Para iniciar os trabalhos, vinha dando dinheiro para o partido de oposição Yobloko, assim como para os Comunistas (sim, esses aceitaram o dinheiro do maior capitalista selvagem de todos). Faltando menos de 6 meses para as eleições da Duma, e já antevendo os riscos de perda de cadeiras aliadas, Putin decidiu agir.
Platon Lebedev, segundo maior sócio do grupo Menatep, controlador da Yukos, foi preso sob acusações de envolvimento numa privatização fraudulenta de uma empresa de fertilizantes em 1994. Uma grande coincidência tal acusação aparecer quase 10 anos após o fato e poucos meses antes das eleições! Para garantir que o recado seria compreendido por Khodorkovsky, seu chefe de segurança foi acusado no mesmo dia de participação num assassinato. E caso restasse ainda alguma dúvida, a Duma entrou com um processo contra as empresas de petróleo alegando evasão fiscal. Tudo isso numa operação orquestrada em menos de uma semana.
O que se seguiu foi uma chuva de acusações contra a empresa e seus sócios, incluindo um suposto assassinato a mando de Nevzlin, bilionário acionista foragido em Israel. O Kremlin congelou ativos da empresa, incluiindo contas bancárias, declarou ilegal a emissão de ações para a compra da Sibneft e rumores chegaram a apontar para um plano de venda da Yuganskneftgas, principal ativo da empresa, por um preço irrisório, que significaria na prática um confisco. Entrementes, um processo particular contra Khodorkovsky e Lebedev os ameaça com 10 anos de prisão, caso condenados [Khodorkovsky está preso até hoje]. O império da lei na Rússia parece ser seletivo, em uma democracia “administrada”.
No “capitalismo” selvagem da Rússia, não existe santo. Qualquer empresário razoavelmente rico possui manchas no currículo, já que a fortuna foi feita em tempos de semi-anarquismo. Sem regras claras e definidas, praticamente tudo era permitido. Os oligarcas sem dúvida alguma não são grandes colecionadores de amigos por lá. Mas o ponto importante é que, uma vez resgatada certa ordem, esses homens vinham se adaptando ao novo mundo civilizado. Tanto que a comunidade de investidores internacionais vivia uma lua de mel com a Yukos, que passou a ser um exemplo de transparência a ser seguido. Putin, com sua caça às bruxas, está lembrando a todos que a Rússia não mudou tanto assim, politicamente falando.
Essa intervenção do Kremlin no “melhor” estilo KGB já custou aos acionistas da Yukos bilhões pela queda das ações, sem falar do efeito dominó por contágio geral. A Rússia já estava sendo tratada por muitos no ocidente como país civilizado, com uma boa agenda liberal de reformas que pode culminar na sua entrada para a OMC em 2005. O mercado de ações subia sem parar, a fuga de capitais para Chipre havia secado, e várias empresas aumentavam seus investimentos captando dinheiro a um custo de país desenvolvido.
Mas a disputa pelo controle do jogo político iria lembrar duramente a todos que aquilo ainda se trata da Rússia, um país emergente com riscos imprevisíveis. O final dessa história nós ainda não sabemos, mas até aqui parece que a democracia russa e seu império da lei ainda são pilares de areia, fracas instituições que inviabilizam uma verdadeira sociedade aberta.
Rodrigo Constantino