• Carregando...
A política como arte: Isaiah Berlin contra os “engenheiros sociais” utópicos
| Foto:
Isaiah Berlin

A sociologia nasceu com Augusto Comte, positivista que via a sociedade como organismo maleável que seguia leis naturais. Surgiam os “engenheiros sociais”. Não foram poucos que tentaram levar as leis da ciência natural para a área de humanas, com resultados quase sempre desastrosos. Abstrações e teorias universais encontravam um grande obstáculo no caminho: a imprevisibilidade humana.

Utopias rejeitam essa característica das sociedades humanas. A busca desenfreada por uma “ciência política”, tal como há a física ou a química, já trouxe desgraça o suficiente para o mundo. Mas não é uma ideia que desaparece facilmente. Justamente por isso, destaquei longos trechos de um ensaio do filósofo Isaiah Berlin sobre o discernimento político, presente no livro O sentido de realidade. Espero que possa contribuir para as reflexões e debates sobre política em nosso país e em nosso tempo.

Os cientistas deterministas mais ambiciosos e extremos – Holbach, Helvétius, La Mettrie – pensavam que, dada uma quantidade suficiente de conhecimento da natureza humana universal e das leis do comportamento social, e uma quantidade suficiente de conhecimento do estado de determinados seres humanos em um tempo determinado, seria possível calcular cientificamente como estes seres humanos , ou pelo menos grandes grupos de seres humanos – sociedades ou classes inteiras – se comportariam sob outro dado conjunto de circunstâncias.

Os filósofos de inclinação científica do século XVIII acreditavam apaixonadamente nestas leis; eles tentaram explicar o comportamento humano totalmente em termos dos efeitos identificáveis da educação, do ambiente natural e dos resultados previsíveis do jogo dos apetites e paixões. Entretanto, essa abordagem mostrou explicar somente uma parte muito pequena do comportamento real dos seres humanos nos momentos em que este mais parecia precisar de explicação.

Pregadores messiânicos – profetas – como Saint-Simon, Comte, pensadores dogmáticos como Hegel, Marx, todos tentaram preencher a lacuna deixada pelo fracasso dos filósofos do século XVIII em construir uma ciência da sociedade adequada e bem-sucedida. Cada um destes novos apóstolos do século XIX lançou sua reivindicação de posse exclusiva da verdade. O que todos tinham em comum era a crença de haver um grande modelo universal e um método único de apreendê-lo, cujo conhecimento teria salvado estadistas de muitos erros e a humanidade de muitas tragédias medonhas.

Deste ponto de vista, o discernimento político não teria nunca mais de ser questão de instinto, faro, iluminações repentinas e lampejos geniais não-analisáveis; ao invés disso, construir-se-ia doravante sobre os fundamentos do conhecimento indubitável.

Os que o aplicariam seriam engenheiros sociais; a misteriosa arte do governo perderia seu mistério; poderia ser ensinada, aprendida, aplicada; tratava-se de uma questão de competência profissional e especialização.

Talvez ninguém tenha contribuído tanto para minar a confiança na possibilidade de uma ciência das relações humanas fidedigna quanto os grandes tiranos de nossos dias – Lenin, Stalin, Hitler. Se a crença nas leis da história e no “socialismo científico” ajudou realmente Lenin e Stalin, ajudou-os menos como forma de conhecimento do que como fé fanática, à maneira que quase qualquer dogma pode ajudar determinados homens, justificando atos implacáveis e suprimindo dúvidas e escrúpulos.

No reino da ação política, as leis são certamente poucas e remotas; habilidades são tudo.

Para capturar a situação neste sentido é preciso ver, experimentar uma espécie de contato direto, quase sensual com os dados relevantes, e não meramente reconhecer suas características gerais, classificá-los e raciocinar sobre eles, ou analisá-los, chegar a conclusões e formular teorias sobre eles.

Um sentido para o que é qualitativo, em vez do que é quantitativo, para o que é específico em vez de geral; uma espécie de familiaridade direta, distinta da capacidade de descrever, de calcular ou inferir; o que, de modo vário, chama-se de sabedoria humana, compreensão imaginativa, insight, perceptividade e, por extensão, de intuição (que sugere perigosamente alguma faculdade mágica), em oposição às virtudes marcadamente diferentes – muito grandes como são – do conhecimento teórico, especialidade acadêmica, erudição, poder de raciocínio e generalização, gênio intelectual.

Como devemos chamar esse tipo de capacidade? Sabedoria prática, razão prática, talvez um sentido do que vai e do que não vai “funcionar”.

É claro, tudo que possa ser isolado, observado e inspecionado deve sê-lo. Não carece sermos obscurantistas. Não desejo dizer ou sugerir, como fizeram alguns pensadores românticos, que algo se perde no próprio ato de investigar, analisar e elucidar, que há virtude na obscuridade como tal, que as coisas mais importantes são profundas demais para as palavras, e deveriam ser deixadas intocadas, que de algum modo é blasfemo enunciá-las.

Há vastas regiões da realidade que somente métodos científicos, hipóteses, verdades estabelecidas podem revelar, dar conta, explicar e certamente controlar.

Meu argumento é que, na prática, nem tudo pode ser abarcado pelas ciências – não há dúvida de que muito não pode sê-lo. Pois como nos ensinou Tolstoi há muito, as partículas são miúdas demais, heterogêneas demais, sucedem-se umas às outras rápido demais, ocorrem em combinações complexas demais, são parte e quinhão do que somos e fazemos, para poderem ser submetidas ao grau requerido de abstração, aquele mínimo de generalização e formalização – idealização – que qualquer ciência deve exigir.

Não há ciência natural da política, não mais do que ciência natural da ética. A ciência natural não pode responder todas as questões.

Homens cientificamente treinados parecem freqüentemente defender posições políticas utópicas, precisamente por causa de uma crença de que métodos ou modelos que funcionam bem em seus campos particulares poderão se aplicar a toda a esfera da ação humana.

Repito: negar que laboratórios ou modelos científicos ofereçam algo – às vezes muito – valioso à organização social ou ação política é sinal de grave obscurantismo; mas afirmar que tenham mais a nos ensinar do que qualquer outra forma de experiência é uma forma igualmente cega de fanatismo doutrinário, a qual já nos levou à tortura de inocentes por monomaníacos pseudocientíficos à procura do milênio.

Sem dúvida, ciências e teorias ajudam às vezes, mas não podem sequer ser um substituto parcial para o dom perceptivo, a capacidade de compreender o padrão total de uma situação humana, o modo como as coisas se articulam – um talento em relação ao qual, quanto mais fino e misteriosamente agudo for, mais o poder de abstração e análise parece estranho, senão positivamente hostil.

O ingrediente indispensável para o bom discernimento político é o conhecimento semi-instintivo destas profundidades maiores, o conhecimento das conexões intricadas entre a superfície exterior e as outras camadas, mais remotas, da vida social ou individual (que Burke foi talvez o primeiro a enfatizar, quem sabe para enriquecer sua percepção de suas próprias propostas tradicionalistas). Tememos, justificadamente, aqueles reformadores audazes que, obcecados demais com sua visão, não prestam atenção ao meio em que estão trabalhando, e ignoram imponderáveis – Robespierre, Lenin, Hitler, Stalin.

Utopia, falta de realismo e mau discernimento não consistem aqui em fracassar na aplicação dos métodos da ciência natural, mas, ao contrário, em aplicá-los excessivamente.

Ser racional em qualquer esfera, nela mostrar um bom discernimento, é aplicar aqueles métodos que nela revelaram funcionar melhor. O que é racional para um cientista torna-se freqüentemente utópico para um historiador ou político (isto é, falha sistematicamente em obter o resultado desejado) e vice-versa.

A excelência de cozinheiros e jardineiros continua, ainda hoje, a depender mais de seus dotes artísticos e, como a dos políticos, de sua capacidade de improvisar. Grande parte da suspeita que os intelectuais suscitam na política advém da crença, não inteiramente falsa, de que, devido a um forte desejo de ver a vida de maneira simples, simétrica, depositam uma fé demasiada nos resultados benéficos de aplicar diretamente na vida conclusões obtidas através de operações na esfera teórica. 

Como não há uma ciência da política à vista, qualquer tentativa de substituir o discernimento individual por imitações de ciência não só conduz ao fracasso, e às vezes a desastres maiores, como também ao descrédito da ciência real, minando a fé na razão humana.

Reivindicar ou pregar precisão mecânica, mesmo tênue, em um campo incapaz disso é ser cego e induzir ao erro.

Rodrigo Constantino

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]