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Além da liberdade: o preço é a eterna vigilância

Assisti ao filme Além da liberdade (“The Lady”), de Luc Besson, que conta a história de Aung San Suu Kyi, líder do movimento democrático na Birmânia (ou Mianmar). Não se pode explicar ao certo o que leva alguém a sacrificar tudo, a família, a vida confortável na civilização (Londres), para se arriscar em seu país de origem em meio a um opressor regime ditatorial.

Essas motivações, talvez inescrutáveis, acabam não sendo muito trabalhadas no filme, apesar das duas horas de duração. É a imagem de uma Gandhi feminina que prevalece, desafiando militares armados somente com flores e palavras. Tocante, sem dúvida. Mas nem sempre o resultado é o desejado.

Filha de Aung San, o herói nacional da independência, Suu Kyi tinha apenas dois anos quando seu pai foi morto em um golpe de estado. Regressou ao país para lutar por liberdade, e acabou confinada em prisão domiciliar por 15 anos, muitos deles sem contato com sua família.

Em 1989, Suu Kyi é presa pela primeira vez, ficando impedida de apresentar sua candidatura às eleições gerais do ano seguinte – as primeiras no país desde 1962. Mesmo assim, seu partido, a LND, obtém uma vitória esmagadora nas eleições de 1990, conquistando 81% das cadeiras em disputa.

Suu Kyi deveria se tornar a Primeira Ministra. A junta militar se recusa a reconhecer o resultado das eleições, e baixa uma lei que impede de assumir o poder quem for casada com um estrangeiro. Lei sob medida.

Em 1991, após os esforços de seu marido inglês, o acadêmico Michael Aris (Oxford), Suu Kyi recebe o Prêmio Nobel da Paz (essa sim, parece merecê-lo “um pouco” mais do que Barack Obama ou Al Gore, sem falar de Yasser Arafat).

Seus dilemas foram grandes. O mártir e o herói não costumam ser bons pais. Uma causa abraçada de forma tão obstinada implica em sacrifícios gigantescos do lado pessoal. Suu Kyi, que nem pôde estar com seu marido quando ele estava morrendo de câncer, reconheceu isso em uma entrevista:

Qualquer um quer estar junto com a sua família. É por isso que existem as famílias. É claro que eu tenho arrependimentos sobre isso. Arrependimentos pessoais. Eu gostaria de ter estado junto com a minha família. Eu gostaria de ter visto meus filhos crescerem. Mas eu não tenho dúvidas sobre o fato de que eu tinha de escolher ficar com o meu povo aqui.

Difícil julgar. Mas há uma cena no filme interessante, quando o militar tenta persuadi-la uma vez mais a ir ver sua família, alegando que ela tem a “liberdade de escolha”, e ela, sabendo que não poderia voltar, questiona que tipo de liberdade é essa de escolher entre a família e seu povo. O exílio forçado sempre arranca um pedaço de nós. No caso dela, pelo visto, arrancaria a alma.

O filme em si poderia ser melhor. Mas sua mensagem é útil, especialmente nos tempos sombrios em que vivemos, com nossa jovem e frágil democracia ameaçada, para nos lembrar de como a liberdade é valiosa. Só que ela não vem de graça. Não há garantias.

A diferença entre a civilização e a barbárie fica evidente na película, quando se compara a Inglaterra com Mianmar. Conquistar a civilização é um desafio permanente e hercúleo. Até mesmo a Inglaterra sofre reveses de tempos em tempos. Os bárbaros estão sempre prontos para destruir os pilares civilizacionais na primeira oportunidade que aparece. Cabe aos defensores da liberdade manter eterna vigilância.

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