Cingapura era um local agrário, sem recursos naturais e muito pobre à época de sua independência, em 1965. Hoje, é uma cidade-estado modelo para o mundo, uma das economias mais dinâmicas e modernas da Ásia, com uma renda per capita acima de US$ 60 mil. Por trás dessa reviravolta impressionante está a figura controvertida de seu “pai fundador”, Lee Kuan Yew.
Nascido em 1923 e descendente de imigrantes da província chinesa de Guangdong, Lee estudou em Cambridge, na Inglaterra, e formou em 1954 o People’s Action Party, que foi eleito cinco anos depois. Lee se tornou primeiro-ministro em 1959, com apenas 35 anos. O nome do partido era adequado, pois ação era o que Lee representava. Mas não qualquer ação; e sim uma esclarecida, aberta ao reconhecimento de erros, pragmática e focada nos resultados. Lee dizia que faria o que fosse correto, não “politicamente correto”.
Tenho em minha prateleira, na enorme fila de espera, sua biografia From Third World to First, um tijolo com 700 páginas que ainda não tive a oportunidade de ler. Enquanto isso, devorei em apenas dois dias o livro bem menor Lee Kuan Yew: The Grand Master’s Insights on China, the United States, and the World, de Graham Allison e prefácio de Henry Kissinger, com vários trechos de entrevistas organizadas por tópicos. A seguir, vou resumir sua visão econômica sobre o sucesso de Cingapura, deixando outros temas igualmente interessantes para uma outra ocasião.
Sendo Cingapura um local sem recursos naturais, era preciso se destacar em inteligência superior e disciplina para prosperar num mundo competitivo. Ciente disso, Lee colocou enorme ênfase no capital humano, na qualidade dos funcionários do governo, atraindo gente capacitada e pagando altos salários em troca, de acordo com seu custo de oportunidade na iniciativa privada. Ninguém deveria ir para o governo por sacrifício pessoal, e sim por merecimento, e o ganho deveria estar à altura.
A palavra de ordem em sua gestão seria meritocracia. Lee é obcecado pelo conceito, acredita piamente que sem ele não há progresso. Ele é totalmente contrário a uma sociedade feudal, em que o nascimento define o futuro do indivíduo, ou a uma sociedade de castas como a indiana, ou ainda a um estado de bem-estar social exagerado que tenta proteger todos do risco de fracasso e alimenta um foco igualitário nos resultados.
Quem produz riqueza é o empreendedor que assume riscos. A única forma de melhorar a vida dos mais pobres é estimulando o crescimento do bolo, o que ocorre quando esses empreendedores trazem inovações para o mercado que melhoram a produtividade da economia. Tolerar ganhos bastante desiguais e combater a inveja social deles decorrentes é crucial no processo. É do interesse coletivo que cada um possa e queira dar o melhor de si para prosperar.
Com uma população de apenas 5,5 milhões de pessoas (hoje), Cingapura precisa atrair os melhores do mundo todo para competir em pé de igualdade com gigantes como Estados Unidos e China. Lee sempre defendeu uma abertura para a imigração, especialmente dos mais qualificados, e abraçou como poucos a globalização. Cingapura é um dos locais mais abertos do mundo, com um comércio exterior (importação + exportação) que ultrapassa 350% do PIB.
Mas para atrair capital humano e físico de qualidade, era preciso desenvolver um ambiente extremamente amigável aos investimentos, e com regras do jogo muito claras e confiáveis. O império das leis seria outra grande obsessão de Lee, assim como a drástica redução da burocracia. A facilidade em abrir ou fechar empresas seria enorme. Cingapura precisa de talentos, e atraí-los é questão de sobrevivência.
Outro pilar seria a língua. Lee percebeu cedo que se dependesse do mandarim não teria a mesma condição de se tornar um hub do comércio mundial e um centro de inovação tecnológica global. O inglês, mais fácil e objetivo, língua dos negócios, da ciência, da diplomacia e da academia, falada pelo mundo todo, tornaria-se não a segunda, mas a primeira língua oficial de Cingapura.
A imagem de “déspota esclarecido” faz algum sentido quando pensamos que muitas dessas decisões foram tomadas ou lideradas por um homem só, muito influente nos rumos do país. Mas Lee era o oposto do governante que impõe um dirigismo econômico de cima para baixo. Ao contrário: sua crença no livre mercado era tanta que ele focou justamente naquilo que o governo podia fazer para garantir seu funcionamento de maneira mais eficiente.
Lee abomina o socialismo, o protecionismo comercial disfarçado de regionalismo, as políticas econômicas intervencionistas, que produzem apenas má-alocação de capital e corrupção. Para ele, cabe ao governo garantir uma ordem social (ele coloca bastante peso no papel da família ao ensinar a diferença entre certo e errado para as crianças, e Cingapura não brinca em serviço quando se trata de atos ilegais ou “malfeitos”), uma boa infraestrutura, serviços públicos de boa qualidade e o império das leis.
Como resultado disso, Cingapura está em segundo lugar no ranking de liberdade econômica do Heritage Foundation, em trajetória ascendente. Trata-se de uma das economias mais livres do planeta. Não vou dizer em que posição está o Brasil, cujos males a esquerda diz que é culpa do “neoliberalismo”, para poupar o leitor do choque e do constrangimento (ok, eu digo: estamos em 114, e caindo, mas ao menos estamos à frente da Índia e da Rússia – uau!).
A qualidade da elite faz toda a diferença. Sua criatividade, sua disposição em aprender com as lições de outros lugares, seu desejo de implementar boas ideias de maneira rápida e decisiva, e sua capacidade de convencer a maioria do povo de que tais reformas compensam, eis o segredo do sucesso. O espírito da inovação deve estar presente, disseminado nas diferentes esferas da sociedade, caso contrário não há avanço.
Meritocracia, disciplina, foco nos talentos individuais, império das leis, credibilidade e previsibilidade na gestão do governo, ampla abertura comercial e liberdade econômica, investimento em infraestrutura de ponta, burocracia reduzida, valorização do inglês, ordem social: essa é a receita do enorme sucesso de Cingapura, sob a forte liderança de Lee Kuan Yew.
Agora que já sabemos o que deve ser feito, resta apenas descobrir quem e como, em nossa democracia sujeita aos riscos populistas e em nossa cultura afeita ao coletivismo igualitário. A parte mais difícil já está resolvida…
Rodrigo Constantino
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