O poeta Ferreira Gullar abandonou seus sonhos comunistas há anos, e tem feito várias críticas aos que ainda insistem nessa utopia. Mas, em sua coluna de hoje na Ilustrada da Folha, Gullar pinta um quadro negativo do capitalismo também, retratando-o como uma dura lei da selva.
Para ele, a luta de classes não é entre patrão e empregado, mas entre patrões, uns tentando “comer” os outros na competição pela sobrevivência nos mercados. Diz ele, sem rodeios:
O mercado é de fato um campo de batalha, uma zona de guerra: quem não dispõe de armas e munição em quantidade necessária e com a suficiência exigida não sobrevive. É a lei da selva, que determina a sobrevivência do mais apto; a seleção natural a que se referia Charles Darwin.
Será mesmo que essa metáfora é a mais adequada para expressar o mercado? Em um campo de batalha, afinal, há um vencedor e um perdedor, claramente definidos. Trata-se de um jogo de soma zero, onde o derrotado fica sem nada, e o vitorioso se apropria das propriedades do vencido. Seria assim o mercado?
Apenas uma parte dele. O fator competição não pode ser negligenciado na análise. Faz parte – e parte importante -, do que é o mercado. Graças a ela há a constante busca por excelência por parte das empresas, sempre preocupadas em inovar, atender melhor os clientes, tratar melhor os funcionários para ter maior produtividade.
Schumpeter falava da “destruição criadora” do capitalismo. Empresas inovam, mostram-se mais capazes, e destronam antigas concorrentes, muitas vezes gigantes estabelecidos nos mercados. É desejável que seja assim, pois a alternativa é um estado estacionário que mata o progresso. Estaríamos ainda com luz de velas, carroças e máquina de escrever.
Mas o mercado não é só isso. Digo mais: é muito mais que isso. Toda uma parte fundamental do mercado capitalista foi solenemente ignorada pelo poeta. Mercado é cooperação. Mercado é união. Mercado é jogo de soma positiva, com a possibilidade de ganho de ambos os lados.
Pensemos no próprio supermercado. Você chega com seu dinheiro no bolso, encontra todo tipo de produto, para todos os gostos e bolsos, e sai com aquilo que deseja. Um incrível processo cooperativo entre milhares de indivíduos e empresas, todos atuando para benefício geral.
Note que a concorrência entre produtos substitutos faz parte do processo, e é fundamental para garantir melhor atendimento e preço mais baixo. Mas essa é uma parte apenas, e não a mais relevante. O que mais chama atenção no “milagre” do mercado é o fator cooperação.
É você ter naquelas prateleiras todas diversos produtos distintos facilitando sua vida. Eles chegaram ali por um complexo mecanismo de cooperação, sem liderança clara, sem um design inteligente, sem um mestre coordenando cada etapa de forma consciente.
Isso é mercado! Muitas pessoas esquecem esse “detalhe” e focam somente no aspecto da voraz competição, dando a entender que se trata de um jogo de soma zero. Nada mais falso. Podemos pensar no próprio mercado de que Gullar faz parte: literatura.
Há a concorrência entre autores, e é ótimo que seja assim. Mas será que um quer “comer” o outro? Claro que, sendo os recursos escassos, quando um autor vende seu livro, isso significa que outro pode ter perdido a venda. Mas, em primeiro lugar, os autores não são motivados apenas pelo lucro das vendas. Ao menos não os bons autores.
Em segundo lugar, graças ao processo cooperativo do mercado, temos novas tecnologias, livrarias agradáveis, eventos literários, enfim, diversos fatores que trabalham em conjunto para que o mercado de literatura como um todo possa florescer. Gullar, como um dos tantos autores, beneficia-se disso, ainda que tenha de concorrer com outros autores.
O poeta conclui: “O que o capitalismo tem de bom é que ele estimula a produção de riqueza e isso pode ajudar a melhorar a vida das pessoas, mas desde que não se perca a noção de que o sentido da vida é o outro”. Estou totalmente de acordo.
O sentido da vida não é acumular por acumular. Vários empresários compreendem isso, assim como até mesmo poetas, que não obstante a sensibilidade diante dos mistérios da vida, precisam manter um pé no chão para comprar os bens materiais de que necessitam ou que simplesmente desejam. Tudo mais acessível e melhor, naturalmente, graças ao mercado capitalista.
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