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Caso Silk Road: deixem Mises fora disso!

Ross Ulbricht, um físico de 29 anos acusado de ser o dono da Silk Road, foi preso essa semana. O site era um local de compras clandestinas de tudo que é ilegal, incluindo drogas pesadas, e Ulbticht é acusado até de assassinato. Em seu perfil, diz-se um anarcocapitalista, contra tudo aquilo que vem do estado. Em sua coluna de hoje no GLOBO, Pedro Doria escreve:

Ulbricht não deixou muitos rastros na internet convencional. Os que deixou indicam um perfil ideológico. É um ultraliberal obcecado pelo trabalho do economista austríaco Ludwig von Mises e convencido de que qualquer intervenção do governo na vida do cidadão cerceia sua liberdade. A Silk Road seria, por este viés, um experimento econômico, um mercado realmente livre onde tudo pode ser comprado ou vendido, basta chegar ao preço. Fundada em 2011, foi exatamente isso por dois anos e meio. Rendeu ao fundador, nos cálculos do FBI, US$ 80 milhões.

A Silk Road, assim como outros tantos sites do tipo, não podia ser alcançada através de um navegador comum, como Chrome ou Explorer. É um site da rede TOR, só disponível para quem instala uma série de programas sofisticados. A sigla significa The Onion Router, roteador cebola, nome que faz referência às inúmeras camadas de segurança. Quem navega pela internet via TOR não pode ser identificado.

Curiosamente, a rede assim tão segura, que hoje gera preocupação ao governo americano, foi financiada pela Marinha do país em princípios dos anos 1990.

TOR não foi a única tecnologia que facilita o anonimado empregada pelo físico. Todas as transações eram feitas utilizando-se de Bitcoins, a moeda eletrônica difícil de rastrear. Em seu site ele se identificava com o pseudônimo Dread Pirate Roberts, uma referência a um dos personagens do romance “O Noivo da Princesa”, de William Goldman.

Estava demorando para isso acontecer. Como liberal e autor de um livro sobre a Escola Austríaca e outro sobre Mises, conheci, naturalmente, inúmeros jovens fascinados com o anarcocapitalismo. Muitos deles demonstraram um fanatismo assustador, e uma visão maniqueísta infantil: o estado é “malvadão”, e o livre mercado é uma panaceia, até para fazer leis e oferecer o serviço policial.

Em infindáveis “debates” com alguns desses “ancaps” mais fanáticos, percebi neles uma disposição para a defesa de verdadeiras aberrações. Dou um exemplo a título de ilustração: como tudo que vem do estado é ilegítimo, pois usa força e coerção, ferindo o princípio absoluto (dogma) de não-agressão, então um policial que tenta prender um sujeito que anda armado com uma bazuca está iniciando agressão, e espancar o policial seria apenas legítima-defesa.

Loucuras como essa pululam no mundo dos mais radicais anarcocapitalistas. Livre mercado de tutela de bebês, por exemplo, é outra insanidade defendida por muitos desses jovens que juram ter descoberto a pedra filosofal. Alguns chegam a tratar os traficantes como heróis que desafiam o “sistema”. É tanto absurdo que vários liberais passaram a encarar essa garotada como os hippies da direita. No fundo, são bem parecidos com os anarquistas de esquerda (anarquia, afinal, é um meio).

Tenho vários textos escritos contra esse fanatismo, mas agora me vejo na necessidade de trazer o debate para cá, uma vez que o “santo” nome de Mises foi parar na coluna do GLOBO associado a essa monstruosidade toda, a esse antro criminoso com verniz libertário. Mises deve estar se revirando em seu túmulo. Em vários livros ele condenou abertamente a anarquia e defendeu a democracia e o estado de direito.

Em sua obra-prima, Human Action, Mises diz: “Por causa da paz doméstica o liberalismo visa a um governo democrático. Democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária. Pelo contrário, ela é o próprio meio para evitar revoluções e guerras civis. Ela fornece um método para o ajuste pacífico do governo à vontade da maioria. […] Se a maioria da nação está comprometida com princípios frágeis e prefere candidatos sem valor, não há outro remédio além de tentar mudar sua mente, expondo princípios mais razoáveis e recomendando homens melhores. Uma minoria nunca vai ganhar um sucesso duradouro por outros meios”.

Em Socialism, Mises escreve: “A democracia não só não é revolucionária, mas ela pretende extirpar a revolução. O culto da revolução, da derrubada violenta a qualquer preço, que é peculiar ao marxismo, não tem nada a ver com democracia. O Liberalismo, reconhecendo que a realização dos direitos econômicos objetivos do homem pressupõe a paz, e procurando, portanto, eliminar todas as causas de conflitos em casa ou na política externa, deseja a democracia”. Ele acrescenta ainda: “O Liberalismo entende que não pode manter-se contra a vontade da maioria”.

Tampouco era Mises um anarquista com o objetivo de eliminar o governo. Longe disso! Toda a essência de sua filosofia política passa bem distante desta bandeira típica dos libertários mais radicais. Em todos os seus livros ele reconhece um importante papel para o governo. Em Bureaucracy, por exemplo, ele sustenta que a polícia deve ser uma clara função do estado. Mises escreve: “A defesa da segurança de uma nação e da civilização contra a agressão por parte de ambos os inimigos estrangeiros e bandidos domésticos é o primeiro dever de qualquer governo”.

Em Liberalism, Mises é ainda mais direto: “Chamamos o aparato social de compulsão e coerção que induz as pessoas a respeitar as regras da vida em sociedade, o estado; as regras segundo as quais o estado procede, lei; e os órgãos com a responsabilidade de administrar o aparato de compulsão, governo”. E, caso não tenha ficado claro, ele enfatiza: “Para o liberal, o estado é uma necessidade absoluta, uma vez que as tarefas mais importantes são sua incumbência: a proteção não só da propriedade privada, mas também da paz, pois na ausência da última os benefícios completos da propriedade privada não podem ser aproveitados”.

Mises ataca diretamente os anarquistas, fazendo questão de separá-los dos liberais: “Liberalismo não é anarquismo, nem tem absolutamente nada a ver com anarquismo. O liberal entende claramente que, sem recorrer à compulsão, a existência da sociedade estaria ameaçada e que, por trás das regras de conduta cuja observância é necessária para assegurar a cooperação humana pacífica, deve estar a ameaça da força, se todo edifício da sociedade não deve ficar continuamente à mercê de qualquer um de seus membros. É preciso estar em uma posição para obrigar a pessoa que não respeita a vida, a saúde, a liberdade pessoal ou a propriedade privada dos outros a aceitar as regras da vida em sociedade. Esta é a função que a doutrina liberal atribui ao estado: a proteção da propriedade, liberdade e paz”.

Portanto, está muito claro que Mises discordava dos meios anárquicos para se preservar a propriedade e a paz, e considerava o estado fundamental para exercer estas funções. Para Mises, “o anarquista está enganado ao supor que todos, sem exceção, estarão dispostos a respeitar estas regras voluntariamente”. Segundo ele, “o anarquismo ignora a verdadeira natureza do homem”, e seria praticável “apenas em um mundo de anjos e santos”.

Confundir Mises com anarquia, como fica claro, é um grande equívoco. Infelizmente, alguns “seguidores” de Mises, como Rothbard e Hoppe, abraçaram o anarcocapitalismo de forma bastante intransigente, e doutrinaram muitos jovens com base em credos que o próprio Mises rejeitava.

Não quero dizer, com isso, que todos os anarcocapitalistas endossam o site Silk Road e seus crimes, claro. Mas vários fazem exatamente isso. E pior: em nome de Mises!

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