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É legítimo pagar alguém para guardar lugar na fila?
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Sempre que a Apple lança algum produto novo, a histórica se repete: longas filas dando a volta no quarteirão para ver quem são os primeiros a obter a novidade desejada. Virou uma febre, e alguns não conseguem aguardar um ou dois dias para ter o novo brinquedo.

Algumas pessoas, porém, não querem esperar tanto tempo nas filas, mas querem garantir logo o produto. O que fazem então? Pagam pessoas, normalmente mendigos, para guardarem na fila seus lugares. E isso invariavelmente gera revolta em muita gente.

Como economista, sempre considerei tal revolta absurda e ilógica. Afinal de contas, trata-se de uma troca voluntária, onde ambas as partes envolvidas saem ganhando. Não é “exploração” da miséria alheia. Se o mendigo não tem nada melhor para fazer, então é desejável que ele ganhe algum trocado por esse trabalho, enquanto quem paga prefere focar o tempo em outra atividade mais valiosa.

O pensamento econômico é claríssimo: Jorge prefere desembolsar $ 100 a ficar na fila esperando, e Pedro prefere ganhar $ 100 e ficar na fila a fazer outra coisa qualquer. Não há coerção. Nenhuma das partes envolvidas perde. Houve maximização de utilidade. Todos estão mais felizes.

Mas o professor de filosofia de Harvard, Michael Sandel, apresenta um contraponto no mínimo interessante em seu livro O que o dinheiro não compra. Ele reconhece a lógica econômica citada acima. Apenas não acha que é o único ponto de vista relevante nesse caso.

Seu principal argumento é que pagar para outro esperar na fila em seu lugar não é garantia de que você realmente valoriza mais aquele produto do que outros. Pode ser simplesmente uma capacidade financeira bem desmedida em relação aos demais. Ele diz:

[…] a disposição de pagar por um bem não mostra realmente quem é que lhe atribui mais valor. Isso ocorre porque os preços de mercado refletem não só a disposição, mas também a possibilidade de pagar. As pessoas que mais desejam ver Shakespeare, ou uma final do campeonato de beisebol, talvez não possam pagar pela entrada. E em certos casos aqueles que pagam mais caro talvez não deem tanto valor assim à experiência.

Em outras palavras: os preços de mercado “passam a constituir indicadores imperfeitos daqueles que mais valorizam determinado bem”. Sandel complementa:

Em certos casos, a disposição de ficar na fila – seja por entradas de teatro ou de jogos – pode indicar com mais clareza quem quer realmente estar presente do que a disposição de pagar. […] Assim como os mercados distribuem os bens com base na possibilidade e na disposição de pagar, as filas os distribuem com base na possibilidade e na disposição de esperar. E não temos motivos para presumir que a disposição de pagar por um bem constitui melhor medida do seu valor para alguém do que a disposição de esperar. […] Saber se em determinado caso a função será mais bem desempenhada pelo mercado ou pelas filas é uma questão empírica, não suscetível de ser resolvida de antemão por um raciocínio econômico abstrato.

São pontos interessantes, que merecem reflexão. O autor mostra outros casos ainda mais complexos, por corromperem funções que deveriam ser nobres, como lobistas que pagam para furar fila e ter acesso aos debates no Congresso. Deve a capacidade de pagamento ser a única variável levada em conta?

Difícil dizer. Não resta dúvida que parece um tanto injusto o sujeito que não tem muito dinheiro sobrando, mas tem tempo para dedicar ao seu sonho de ser um dos primeiros a comprar o novo iPhone, perder essa oportunidade porque outro, bem mais rico e que nem liga tanto assim para a novidade, pagou por capricho um mendigo para guardar seu lugar na fila. O primeiro queria mais o produto, mas o outro podia mais.

Alguns estabelecimentos e eventos tentam impedir esse tipo de situação cobrando identidade na hora de distribuir as senhas, ou limitando a quantidade de ingressos vendidos, para não caírem nas mãos de cambistas que vão revender depois com bons lucros aos que não puderam esperar nas filas.

Em minha humilde opinião, acho que a liberdade de escolha deveria ser de quem vende. Ou seja, se a Apple decidir que prefere privilegiar aqueles que realmente demonstram vontade de adquirir o produto, mesmo sem dinheiro sobrando para pagar mendigo na fila, cabe a ela criar regras que dificultem essa prática.

O estado não deveria se meter nisso, por mais injusto que possa parecer o outro conseguir “furar” a fila porque é mais rico. Quando o estado se arroga o direito de fazer esse tipo de “justiça”, a emenda costuma sair pior que o soneto. Os mais ricos continuam comprando privilégios, mas dessa vez de forma ilegal por meio de propinas e suborno aos poderosos burocratas.

Por fim, é bom lembrar que nem sempre querer é poder. O mundo é injusto mesmo. Eu posso desejar ter um Bentley muito mais do que o Chiquinho Scarpa, que pensou até em enterrar o seu no quintal da casa. Mas paciência: ele pode, eu não. Ele faz com o carro dele o que bem entender, ainda que me pareça uma afronta alguém ter um “brinquedo” desses e não dar o “devido” valor. É da vida. E quem disse que ela é sempre justa?

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