Em sua coluna de hoje na Ilustrada da Folha, Contardo Calligaris vem em defesa das prostitutas. Não apenas uma defesa legal – esta eu também endosso -, mas sim uma defesa moral. E aqui é que começam nossas divergências.
Após criar uma situação hipotética em que sua filha pede permissão para dormir com o namorado em casa, Calligaris avança mais e questiona qual seria a reação se ela pedisse para dormir com qualquer um em casa, porque a transa é boa. Ele usa o clássico de Shakespeare para fazer seu ponto:
Desde Romeu e Julieta, nós, pais, aprendemos a respeitar a autonomia do indivíduo em matéria de sentimentos. Fazer o quê? Eles se amam, e contra o amor não se pode quase nada.
Agora, imagine que Romeu e Julieta se encontrassem só para transar adoidados, sem nenhum compromisso sentimental? Não sei se, nesse caso, as plateias da peça shakespeariana torceriam imediatamente por eles.
Imagine que sua filha peça a permissão de trazer para o quarto dela um cara com quem ela se dá bem na cama e tem muito prazer em transar, sem envolvimento sentimental algum. Qual seria sua reação nesse caso?
Devo ter repetido mecanicamente, não sei quantas vezes, que os anos 1960 foram a época da liberação sexual, mas não é nada disso: o que houve foi uma liberação amorosa. Ficou permitido transar caso haja amor. A transa pelo prazer não foi liberada; ela ainda é culpada e precisa ser resgatada pelo “nobre” sentimento amoroso.
Notem que o psicanalista anarquista escreve isso lamentando o pouco “avanço” dos progressistas de Maio de 68. O sentimento amoroso é retratado como nobre, entre aspas! Ou seja, esse “nobre” sentimento, pelo visto piegas e ultrapassado, é que nos impede de aceitar a transa pelo puro prazer, sob o teto do nosso lar.
Somos muito caretas ainda! Não toleramos bem a ideia de nossas filhas trazerem cada dia um marmanjo para seu quarto, para “dar umazinha”, depois tomar um café da manhã em família (outro conceito antiquado, talvez?) e se mandar, para jamais voltar. Que reacionários nós somos!
Calligaris explica que esse moralismo é que nos gera o preconceito contra a prostituição:
É por isso que a prostituição continua maldita, porque se funda, em tese, no escândalo que é o prazer do sexo sem amor. Em geral, quem tolera dificilmente essa ideia considera as pessoas que se prostituem como eternos menores (seja qual for sua idade), sem liberdade, sem vontade própria –apenas vítimas de cafetões, miséria e traumas de infância.
De fato, que escândalo o prazer do sexo sem amor em pleno século 21! Aliás, compreender que muitos farão sexo sem amor, e que isso é até desejável, é exatamente a mesma coisa que enaltecer, portanto, aquela que faz isso em troca de dinheiro. Já que vale tudo pelo prazer do aqui e agora, por que não ligar o taxímetro e maximizar os ganhos, não é mesmo?
Contardo Calligaris seleciona a dedo seu inimigo em seguida. Um deputado moralista e puritano que pretende proibir a prostituição, e o mesmo que queria “curar” a homossexualidade. Ah, como é fácil “debater” com um espantalho! Quer valorizar o hedonismo imoral? Então basta colocá-lo como contraponto ao puritanismo autoritário!
Só que não. A tática é conhecida, mas desonesta do ponto de vista intelectual. Nem todos que condenam moralmente a prostituição precisam defender uma visão puritana de comportamento, e ainda por cima imposta pela lei.
Entre o hedonismo de Calligaris e o puritanismo do deputado, há um enorme espaço para alternativas. Para começo de conversa, aquela de Nelson Rodrigues, que tanto valorizou o amor em seus artigos, como grande diferencial humano. Afinal, transar por transar os bichos fazem, no meio da rua, sem se importar com sentimentos. Somos como os cães?
Gostaria de perguntar a Calligaris até onde vai seu relativismo moral. Será que ele realmente não se importa em ter uma filha prostituta? Será que lhe é totalmente indiferente se sua mãe for uma médica respeitada ou uma prostituta de rua? Se sua filha aparecesse em casa cada dia com um galalau estranho, ou se ela trouxesse um namorado sério e apaixonado, isso seria a mesma coisa? De verdade?
Acho que devemos respeitar as prostitutas enquanto seres humanos, indivíduos, e prefiro manter a lei fora disso. Mas daí a enaltecer suas escolhas morais vai uma gigantesca distância! Um dos grandes males do mundo moderno é justamente o relativismo moral exacerbado.
Ninguém mais pode julgar nada, pois é “preconceito”. Façamos sexo como cachorros, que sequer fazem distinção por familiares! Não vale tudo pelo prazer imediato? Se desejamos manter nossa humanidade, espero que não.