Assim como o Garfield, não são poucos os que não suportam segundas-feiras (e isso acaba estragando até o domingo). Mas tem ao menos um fator que anima minhas segundas: saber que a coluna de Luiz Felipe Pondé me aguarda na Ilustrada da Folha. É quase sempre um deleite.
Hoje foi. Afinal, é realmente espantoso ver a covardia moral de intelectuais ocidentais sempre em busca de uma crença boboca para abraçar, no fundo mais preocupados com a sensação que isso causa do que com os resultados concretos em si. É tudo pelo regozijo pessoal.
Não foi diferente com a “Primavera Árabe”. Chegou a ser quase comovente ver tanto “especialista” vibrando porque, finalmente, o Oriente Médio iria mergulhar em um progressismo democrático de fazer inveja a Obama. Mas não era comovente, pois era patético, infantil. É coisa de gente que coloca seu desejo de crer acima da constatação fria dos fatos. Para tudo basta “vontade”. Realismo passou longe dessa turma.
Foi esse o tema da coluna de Pondé hoje. Começa usando a fábula do escorpião que pica a rã mesmo contra seus interesses, para lembrar da “natureza” de certas coisas, que não podem ser mudadas da noite para o dia com boas intenções e lindos discursos. Resta explicar isso a Obama e seus fieis seguidores. Diz Pondé:
É impressionante como a minha classe intelectual se fez ridícula diante da Primavera Árabe, mais especificamente agora, com a Síria, achando que ali havia um movimento democrático islandês. Não há isso nem na Síria, nem no Egito. A democracia ali é tão estranha quanto para nós seria uma teocracia.
Mas a vida intelectual pública está morta no Brasil, vítima da mania de ver em toda parte “um processo histórico” em curso, da avenida Paulista às ruas de Damasco, o mesmo ridículo “frisson” com “um processo político” em curso, visando a “autonomia popular”. Puro fetiche.
[…]
Mais recentemente, e associado aos movimentos nos países árabes e às baladas de junho, nasceu um novo fetiche, o da revolução causada pelas redes sociais.
No Oriente Médio, os escorpiões riem desse ridículo, que tem em Obama “sua baratinha tonta” querida. O Obama pensa que é presidente de um centro acadêmico de ciências sociais.
Alguns intelectuais europeus, tomados pelo “frisson” de gozarem com seu próprio fetiche, chegaram a falar em “dois momentos da Primavera Árabe” (à la Marx) por conta do golpe “secular” do exército egípcio em cima do governo fundamentalista eleito democraticamente. Por que não paramos de projetar esquemas metafísicos (do tipo dialética hegeliano-marxista) sobre o mundo?
Acabamos por acreditar que obscuros cineastas árabes vivendo nos EUA ou professores de filosofia em capitais árabes (exemplos de “contaminação” com nosso modelo ocidental, ferramentas de nosso próprio gozo, porque “pensam como nós”) representam a população e a vida nesses países.
[…]
Mas, desde o momento em que a mídia ocidental batizou os movimentos nos países árabes de “primavera” (ecoando a Primavera de Praga), fetiche ocidental, estabeleceu-se um programa de interpretação daqueles fenômenos como se eles fossem réplicas da mitológica Revolução Francesa, de Maio de 68 (a revolução de queijos e vinhos) e da queda das ditaduras marxistas no Leste Europeu. Entrevistando “ocidentalizantes” naqueles países, acabamos por projetar sobre eles uma demanda estranha àquele universo.
Ao endossar sem crítica os chamados rebeldes sírios, acabamos por “justificar” a guerra civil síria, para depois ficarmos posando de Madalenas arrependidas com a violência na Síria.
Em vez disso, deveríamos ouvir a sabedoria do escorpião do deserto e menos nossos livros escritos sob a tutela de taças de vinhos nas ruas de Paris.
A alfinetada de Pondé é dura, quase cruel, mas necessária. Gente no conforto ocidental, entre uma taça e outra de vinho, pensa que compreender o funcionamento do mundo e que tudo vai mudar porque algumas pessoas usam o Twitter agora. Se fossem ingênuos inofensivos, não passariam de uma curiosidade antropológica. Mas não são.
Influenciam muitas pessoas, e estão no governo do país mais poderoso do mundo. O estrago que causam é enorme. Por isso precisam ser desmascarados. A busca dessa “vibe” de superioridade moral deles é responsável pela desgraça concreta de milhões de pessoas de carne e osso. Mais realismo cético não faria mal a ninguém.
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