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Esquerda, direita e espantalhos

Meu artigo sobre a caricatura que a esquerda faz da direita recebeu uma crítica legítima: também fiz uma caricatura da esquerda. Confesso. Mea culpa. Mas há um motivo para isso: a esquerda que retratei de forma caricatural, aquela que “ama a Humanidade”, mas adora ditadores assassinos, não só é bem vasta e representada politicamente no Brasil (PT, PSTU, PSOL), como está no poder!

Há vida inteligente na esquerda? Em minha opinião, sim. Respeito vários quadros do PSDB, por exemplo, que é claramente um partido de centro-esquerda. Mas aqui começam os problemas: o Brasil está tão atrasado no debate político, e essa esquerda jurássica e caricata que apontei está há tanto tempo disseminando mentiras, que o PSDB passou a ser visto como direita!

Portanto, quando falo de uma esquerda hipócrita e autoritária, que se diz “progressista”, monopoliza os fins nobres, e bajula ditadores enquanto isso, estou falando da esquerda mainstream, da esquerda que está no governo, que controla as universidades, parte da imprensa, parte da igreja. A caricatura não é injusta, ou seja, nem é bem uma caricatura. A realidade dela é que parece caricatural, de tão reacionária e retrógrada que é (como pode alguém ainda defender o regime cubano em pleno século 21?).

Dito isso, a direita que a esquerda pinta como fanática e reacionária existe, sem dúvida. Mas está longe de ser a maioria ou algo perto disso, como a esquerda dá a entender. Essa, sim, é uma imagem caricatural. Pegam uma minoria mais barulhenta, saudosista do regime militar (não confundir com o contragolpe de 1964 e o governo Castello Branco), ou que abraça um fanatismo religioso incompatível com a liberdade individual (não confundir com a religião em si), e transformam isso em toda a direita. Espantalho puro, como mostrei.

Alguns leitores não gostaram de eu ter colocado Bolsonaro na lista das caricaturas que a esquerda usa contra a direita. Reconheço que o deputado tem coragem de combater os comunistas, a corja dos petralhas, mas isso não faz dele uma direita razoável. Ser antipetista é condição necessária, mas não suficiente para ser louvável.

Alguém que diz que FHC devia ser “fuzilado” por ter privatizado a Vale não pode merecer muito respeito, ainda que seja um aliado temporário contra o inimigo principal, que está no poder. É preciso saber separar as coisas. Alianças e concessões pragmáticas devem ser feitas em nome de uma causa maior, que no momento é tirar o PT do poder. Mas isso não quer dizer que seja vantajoso ou desejável, para a direita liberal, ou conservadora de “boa estirpe”, como costumo dizer, associar-se a figuras assim.

Não custa lembrar que Leandro Narloch, em pesquisa para seu novo livro, entrevistou políticos brasileiros com perguntas baseadas em Mussolini, sem que soubessem, e Bolsonaro foi o campeão de respostas afirmativas, endossando o credo fascista. Ficou bem perto da turma do PCdoB, autoritária ao extremo.

O pastor Marco Feliciano tampouco deve ser considerado um representante da direita que presta. Não só votou e foi aliado do PT até ontem, como não dá para levar muito a sério sua postura. Uma coisa é defendê-lo dos ataques coordenados e pérfidos da esquerda e do movimento gay, autoritário e intolerante; outra, bem diferente, é colocá-lo como ícone da direita liberal ou conservadora.

Para liberais como eu, não há problema em se colocar na direita, desde que esta seja qualificada. Talvez a melhor distinção seja foco individual versus coletivismo. Pois não resta dúvida de que existe uma direita autoritária e coletivista, e dessa os liberais devem manter distância, ainda que possam fazer vista grossa no curto prazo de olho no inimigo comum (Churchill lutou ao lado até de Stalin quando era para derrotar Hitler).

O viés nacionalista (não confundir com patriotismo saudável) é outro elo que freqüentemente liga alguns conservadores ao coletivismo. Pensar em termos de “nossa” indústria ou “nosso” recurso natural é um pequeno passo de distância para começar a demandar que tais ativos nacionais sejam direcionados para o “interesse nacional”. Protecionismo, reservas de mercado, subsídios agrícolas, são algumas das medidas que podem colocar conservadores lado a lado com socialistas, ambos contra os liberais.

Enfim, o debate político-ideológico no Brasil ainda precisa melhorar muito. Alguns extremos devem ser podados para não contaminarem a coisa toda. Reacionários e autoritários existem tanto na esquerda como na direita. Ao mesmo tempo, há uma (pequena) parte da esquerda que merece respeito, que é a social-democracia moderna. Discordo dela, claro, mas respeito o debate.

Infelizmente, ela é vista como direita no Brasil, e a direita liberal ou conservadora, que nem tem organização político-partidária, é vista como “ultraliberal” ou “reacionária”, sendo que figuras caricatas de uma direita realmente obsoleta servem de ícones para toda a direita, uma tática deliberada da esquerda para refutar um espantalho e fugir do debate verdadeiro.

Como o país seria melhor se socialistas, fanáticos religiosos e anarquistas fossem ignorados, e o debate ficasse concentrado entre social-democratas, liberais e conservadores de boa estirpe. Um sonho! Será que chegaremos lá um dia?

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