O mundo pode ser um mar de desilusões. Para fugir delas, muitos procuram abrigo em utopias. Após o término da Segunda Guerra Mundial e com a fundação de Israel, vários judeus imaginaram que os kibutzim seriam justamente esse refúgio, comunidades com um ambiente igualitário de paz.
O renomado escritor israelense Amós Oz, em seu mais recente livro, Entre amigos, trata do tema, revivendo e recriando histórias entrelaçadas dos anos 1950 no kibutz Ikhat, vizinho de uma antiga aldeia árabe. São oito histórias aparentemente desconexas, mas que vão revelando uma espécie de drama comum, pois universal.
Quem pensou ser possível entrar numa comunidade dessas e deixar do lado de fora os males da humanidade quebrou a cara. Inveja, traição, egoísmo, insensibilidade, solidão, mesquinhez, hipocrisia, tudo isso fica exposto nas comédias humanas que o autor nos conta em primeira pessoa e com narrativa seca, objetiva, como um membro do mesmo kibutz (ainda que divino, como todo autor, pois capaz de entrar nos sentimentos e pensamentos dos outros).
Comentando sobre o livro, Amós Oz disse: “O fato de que a experiência de kibutz foi imperfeita não tem a ver com ser um kibutz, mas com ser um sonho”. E acrescentou: “A única maneira de manter uma fantasia intacta é não vivê-la”. A vida é sempre imperfeita, repleta de decepções e sofrimentos. Os utópicos igualitários acreditaram que era possível driblar tal destino. Nada mais falso.
Cada personagem do kibutz vai ganhando vida, com um perfil diferente do outro, mas a maioria imbuída do mesmo sonho igualitário, que não correspondia à vida prática. Um deles era “um marxista fervoroso, mas adorava ouvir preces judaicas entoadas por um chazan, um cantor de sinagoga. Todos esses anos David Dagan trabalhava como professor de história no instituto educacional. Trocava frequentemente de namorada e até teve seis filhos com quatro mulheres diferentes, do nosso kibutz e de dois kibutzim vizinhos”.
A nova namorada do professor era a filha de seu melhor amigo, Nahum. Este viu sua vida totalmente abalada. “Ele tentou, em vão, convocar em seu auxílio seus conceitos progressistas nas questões de amor e de liberdade. Seu coração se enchera de tristeza, constrangimento e vergonha”. Ideologias e conceitos progressistas não conseguem romper certas barreiras, certos “preconceitos” e tradições, que não existem por acaso, mas porque falam alto à natureza humana.
Era comum o debate interminável de quem deveria tomar conta das crianças: os pais biológicos ou todos em revezamento. A quem pertenciam os filhos? Uma das oito histórias passa justamente pelo drama de um pai cujo filho problemático, com 5 anos apenas, tímido e medroso, alvo de ataques das outras crianças (puras?), deseja desesperadamente dormir na casa com seus pais, mas é impedido pelo conselho do kibutz (toda decisão é coletiva).
O paisagista da comunidade, um velho solitário, tampouco encontrou no kibutz um refúgio adequado para seus problemas. Ele “pensou que a vida de um solteirão envelhecendo e solitário é mais difícil aqui entre nós do que em outro lugar, porque a sociedade kibutziana não tem nenhuma resposta para a solidão. Mais do que isso: o próprio conceito de kibutz nega o conceito de solidão”. Pode negar o conceito, claro, mas é incapaz de negar o sentimento.
A mãe viúva de um rapaz que recebe o convite do tio para estudar na Itália, com tudo pago, mas que ainda não se encontra na idade permitida pelo conselho para desfrutar desse privilégio, acaba revoltada com toda a inveja mascarada de altruísmo no local. O professor marxista, influente no kibutz, pensa que tais sonhos de autorrealização não passam de dengo, não um argumento. Pedido vetado. É preciso combater o individualismo.
Para outra mulher, todos ali são companheiros, mas poucos são amigos. “Os companheiros veteranos são na verdade pessoas de fé que abandonaram a religião e em seu lugar adotaram uma religião nova, cheia de pecados e transgressões e cheia de proibições e de regras rígidas. Eles de fato não deixaram de ser ortodoxos e só trocaram uma ortodoxia por outra. Marx é o Talmude deles. A assembleia é a sinagoga e David Dagan é o rabino”. É mesmo possível abrir mão de regras e proibições? A “anarquia” funciona? Ou algum líder vai sempre mandar mais?
A última história é também a que retrata o mais rígido dos utópicos, da velha guarda que não faz concessão alguma aos valiosos princípios. Martin achava que a riqueza “é a mãe de todo pecado”, acreditava “na abolição de todos os estados nacionais e numa fraternidade mundial e pacifista que se libertaria depois que as fronteiras entre os povos fossem eliminadas”. “Martin tampouco acreditava na instituição familiar, porque a vida do casal em si mesma cria uma barreira supérflua entre a célula familiar e a sociedade”.
“Achava que a comunidade como um todo tinha de criar e educar todas as crianças, e não só seus pais biológicos. Tudo aqui pertence a todos nós, todos nós pertencemos uns aos outros e as crianças têm de ser crias de todos nós”. Para ele, o homem é, por natureza, bom e gentil. “São só as distorções da sociedade que o empurram para o egoísmo e a crueldade”. As crianças são puras e inocentes. Em suma, um perfeito filhote de Rousseau.
Era adepto fervoroso do esperanto, “língua que um dia seria falada por todos os habitantes do mundo nos cinco continentes par que fossem abolidas todas as barreiras entre um homem e outro, entre um povo e outro, como tinha sido antes da maldição da Torre de Babel”. Como dois alunos seus de esperanto lembram, os judeus alemães e os nazistas alemães falavam a mesma língua, assim como Caim e Abel. Mas quem liga para isso? A realidade é chata, a utopia é linda!
Osnat acompanha o avanço de sua doença respiratória, que acabaria por matá-lo. Ela abre a primeira história do livro também, como a mulher que fora abandonada pelo marido, trocada por outra. É sua a constatação que melhor resume a mensagem do livro:
Ficou descalça junto à janela aberta e disse consigo mesma que a maioria das pessoas, pelo visto, precisa de mais calor e afeto do que os outros são capazes de dar e que esse déficit entre a demanda e a oferta nenhum dos comitês do kibutz, nunca, conseguirá cobrir. O kibutz, pensou, muda um pouco as disposições da sociedade, mas a natureza humana não se modifica, e essa natureza não é fácil. Não se pode abolir de uma vez por todas a reles inveja e a mesquinhez numa votação em instituições do kibutz.
Amós Oz tenta manter a chama da esperança acesa, afinal, foi um militante pacifista pela vida toda. Ainda parece crer num mundo mais pacífico se cada um tentar dar mais calor e afeto e for menos egoísta. Alguém mais cético poderia dizer que o homem, sendo o que é, precisa mais das boas instituições do que das boas intenções, e que se aquelas dependem destas, estamos em maus lençóis. O grande mérito de Adam Smith foi justamente perceber que, mesmo sem o altruísmo, era possível alcançar o bem-geral por meio do livre mercado.
Os kibutzim, além de não refrearem as paixões humanas mais mesquinhas, acaba adotando instituições prejudiciais ao indivíduo, justamente por serem igualitárias. A realidade se mostrou dura para todas essas comunidades, estagnadas na subsistência e dependentes de ajuda externa.
O filme “A Vila”, do indiano M. Night Shyamaian (o mesmo de “O Sexto Sentido”), retrata bem a hipocrisia dessas comunidades fechadas. Os mais velhos, todos eles foragidos da grande cidade por sofrimentos e perdas pessoais, desenvolvem uma blindagem contra a civilização. As crianças, desde cedo, escutam terríveis histórias sobre as criaturas-cujo-nome-não-pode-ser-dito.
Mas o isolamento não impede desgraças, e o personagem de Joaquin Phoenix acaba atingido por facadas de um outro com problemas mentais. Remédio para salvar sua vida? Apenas fora da vila. Mas quem vai atravessá-la e enfrentar as tais criaturas? Os mais velhos preferem deixar o rapaz morrer a reconhecer a farsa. Até que uma moça cega decide ir em busca de ajuda. Metáfora interessante.
No processo (atenção, spoiler), descobre-se que a vila é protegida por um imenso parque de propriedade de um de seus fundadores. A doce hipocrisia dos igualitários e pacifistas que precisam do capital e da força para manter suas ilusões.
O isolamento nunca foi boa resposta para os riscos da vida. E o igualitarismo sempre se transformou, na prática, em autoritarismo exercido por um seleto grupo de pessoas mais iguais que as outras. Sonhar é importante. Mas manter ao menos um pé no chão também.
Rodrigo Constantino