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Libertação

Passei esse fim de semana imerso na Segunda Guerra, bem no meio do furacão: Budapeste, cidade tomada pelos alemães nazistas de um lado, e depois “libertada” pelos russos bolcheviques. Trata-se do livro Libertação, de Sándor Márai, que retrata com detalhes essa angústia húngara da época. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come…

A história de Erzsébet se confunde com a própria história da cidade. Oscila entre a esperança e o desespero, não tolera mais a ocupação nazista, mas para se “libertar”, tem de ser estuprada de forma fria e mecânica por um soldado comunista. Há sentido nisso? Como o ser humano é capaz de tanta atrocidade? São as questões metafísicas que o autor aborda em interessantes diálogos.

Poucos, sob aquelas circunstâncias, resistem, preservando sua integridade moral:

Como se uma sociedade no momento do perigo derradeiro perdesse a dignidade humana restante: traía-se em massa, escreviam-se cartas anônimas, ou assinadas com nome e sobrenome, corria-se para entregar o infeliz que nas voltas finais da corrida ensandecida se espremia asfixiado num canto das profundezas dos abrigos…

Em meio a tanta desumanidade, à covardia generalizada, eis que o pai de Erzsébet, um cientista, não sucumbe ao coletivismo totalitário. Seu heroísmo consiste em se manter indivíduo, fiel a seus valores e princípios:

A postura pessoal era inconfundível; seu silêncio revoltava a “direita” como se ele estivesse abertamente contra eles. Pois os detentores do poder não necessitavam de nada, embora demandassem com intensidade o respeito moral dos intelectuais – eles lhe dariam tudo se com um gesto ele aprovasse a aventura sangrenta que buscavam tornar atraente para a multidão com sedutoras palavras de ordem, patrióticas e racistas. Entretanto não obtinham do pai justamente o apoio moral do homem de espírito: e por isso o odiavam. Tinham necessidade do nome, do nome célebre e limpo, do nome imaculado do cientista; e o cientista silenciara durante anos, não saíra do escritório, e no início de março desaparecera. Por isso o odiavam, e o procuravam cada vez mais enlouquecidos.

Mas quantos conseguem agir assim diante do medo, da avassaladora sensação coletivista, que retira do indivíduo qualquer resquício de responsabilidade? Tibor, o amante de Erzsébet que preferiu fugir do país, condena seus vizinhos sem rodeios. Ele “não confiava no poder de resistência da sociedade húngara”, pois “a sociedade não tinha força moral para resistir”.

Quantas sociedades possuem “força moral” para resistir? Quantos indivíduos são capazes de agir com base em princípios diante do perigo, colocando sua própria vida em risco? Como o adventista da história, que ajudava estranhos sem motivo aparente:

O que acontecia naquela alma nessa hora em que o homem se despira de todos os compromissos humanos? Um homem que havia permanecido fiel aos compromissos humanos escritos e tácitos, à lei da ajuda, num mundo que negava todas as leis e se aniquilava com um ódio insano.

Quando um pequeno grupo entrou no porão em que dezenas de pessoas se escondiam, retirou um judeu, e o assassinou diante de todos, o grau de excitação foi total. Por que ninguém reagiu? Por que a passividade? Só porque os assassinos estavam armados? A consciência da coisa como um todo ficou mais clara:

Compreenderam que o acontecido no dia anterior na Polônia, na Ucrânia, nos acampamentos alemães, nos porões das casernas das cidades francesas, belgas, holandesas, norueguesas, austríacas, tchecas, sérvias não era “má notícia ou propaganda”, mas responsabilidade pessoal.

Primeiro atacaram os judeus, e muitos consentiram calados. Mas a questão não era judaica, e sim da humanidade. Os próprios judeus não são uniformes. Há muitas diferenças entre eles. “Veja, talvez seja essa a razão de todo mal-entendido. A generalização é o grande problema, uma das causas de toda desgraça”. Ela alimenta o ódio no ser humano, que passa a enxergar abstrações coletivas, em vez de indivíduos de carne e osso, com suas várias características.

Mas será o homem capaz de superar isso? Sándor Márai não traz uma mensagem romântica de esperança. Ele sofreu na pele o pior lado da natureza humana, exilou-se em 1948, inconformado com o regime comunista, e se suicidou nos Estados Unidos em 1989, às vésperas do fim do comunismo.

Pessimismo com nossa espécie, ou realismo? Difícil condenar alguém que passou por tanta desgraça produzida pelos próprios homens e suas ideologias coletivistas, alimentadas pelo ódio. Será o homem capaz de superar sua típica covardia moral quando o ódio toma conta do coletivo? Há alguma chance de libertação?

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