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O conceito de livre-arbítrio é muito importante para liberais e conservadores. Afinal, cobram dos indivíduos a responsabilidade por seus atos, partindo da premissa de que, em geral, cada um tem a liberdade de escolher como agir.

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Já boa parte da esquerda prefere adotar uma postura mais determinista, alegando que somos vítimas da “sociedade”, ou que nossas ideias dependem de nossa classe social, nosso gênero. Exime, assim, o próprio indivíduo do fardo de seus atos.

Claro que quando se fala em livre-arbítrio não se ignora que há forças exógenas que influenciam nossas escolhas, tais como o ambiente, a educação, o contexto ou mesmo a genética. Mas influenciar não é determinar. Há margem de manobra, um grau de liberdade que faz toda a diferença, permitindo justamente que possamos julgar pessoas merecedoras de honras ou descrédito.

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H.L. Mencken escreveu sobre o assunto, rejeitando o conceito de livre-arbítrio. Em O livro dos insultos, consta a seguinte passagem:

Não consigo me lembrar de ter desempenhado um único ato inteiramente voluntário. Toda a minha vida parece ser uma longa série de acidentes inexplicáveis, e não apenas inevitáveis, mas até ininteligíveis. […] Não sou responsável nem pela personalidade nem pelo ambiente. Dizer que posso modificar essa personalidade por um ato voluntário é tão ridículo quanto dizer que posso modificar a curvatura do cristalino de meus olhos. […] Quanto mais se examina o assunto, mais o resíduo do livre-arbítrio parece encolher, até que, no fim, torna-se impossível seguir-lhe a pista. [meus grifos]

Um ato inteiramente voluntário pode ser algo complicado mesmo. Mas a volição existe, não resta dúvida, e é o que separa o joio do trigo, as pessoas decentes das demais. Claro, podemos ter casos extremos de desvio de caráter por algum fator bastante fora de controle, mas em geral é o indivíduo quem escolhe ser correto ou não. Aristóteles nos lembra que a virtude é um hábito.

Vale notar que mesmo Mencken, após esse discurso, não pretendia inocentar os criminosos com base no ataque ao livre-arbítrio. Ele explica:

As conseqüências se seguem aos fatos, implacavelmente, sejam eles voluntários ou involuntários. Se assalto um banco por minha livre decisão ou em resposta a alguma necessidade interior insondável, não importa: vou para a mesma cadeia. Na guerra, morrem tanto os soldados convocados à força quanto os voluntários.

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No fim do dia, é isso que está em jogo: defender o julgamento e a punição de indivíduos, ou jogar a responsabilidade de seus atos em fatores exógenos. Só tem um detalhe: a postura de quem abraça o determinismo é contraditória. Afinal, a pessoa está defendendo esse ponto de vista, não? Com base em que? Ora, ela é ou não livre para formular seus pontos, seus argumentos?

Roger Kimball, em Radicais nas Universidades, confronta uma psicanalista com tal contradição. Diz ele:

Em “Para um individualismo relacional: a mediação do Eu por meio da psicanálise”, por exemplo, Nancy Julia Chodorow nos assegura que “a psicanálise solapa radicalmente as noções de autonomia, escolha individual, vontade, responsabilidade e racionalidade, mostrando que não controlamos a nossa vida no sentido mais fundamental”. Pensemos por um momento nessa ideia. Em que sentido a psicanálise realmente solapa as ideias de vontade, escolha, responsabilidade etc.? Afinal, a professora Chodorow não quis escrever esse ensaio? Ela não escolheu fazer uma contribuição para esse volume? Ela não assumiu a responsabilidade de entregar o manuscrito até certa data? Apesar das volumosas tentativas por parte da psicanálise acadêmica de nos convencer de que somos criaturas de impulsos inconscientes, não testemunhamos, na verdade, a contingência e pertinência desses conceitos todos os dias?

Xeque-mate. Uma coisa, como eu disse, é falar de influências obscuras, até insondáveis. Como disse Freud, não somos senhores em nossa própria morada (mente). Senhores absolutos! Até aí tudo bem. Mas falar em comportamento determinado, como se não houvesse espaço algum para decisão? Isso é absurdo e paradoxal, pois quem afirma isso teria que aceitar que não o faz por livre escolha e raciocínio, e sim como um autômato, de forma irrefletida.

Em Esquerda Caviar, eu usei um exemplo para ilustrar a posição insustentável e normalmente hipócrita de quem nega a liberdade de escolha dos outros (quase sempre de quem fez coisas erradas):

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É muito comum ver as pessoas se esquivando o tempo todo da responsabilidade por seus atos. Elas não têm escolha; são vítimas. Mas aqui também a vitimização é seletiva e, portanto, hipócrita. A psicóloga que acaba de sair da entrevista em que defendeu a tese de que os criminosos são vítimas sociais, de que os viciados em crack não tiveram escolhas, perde a estribeira se descobrir que seu marido estava no motel com uma amante.

Ora, ele não é também uma vítima dos traumas de infância? Ou passou repentinamente  a ter liberdade de escolha para ser julgado por seus atos? Agora é um “cachorro”, um “salafrário”, um “canalha”? Mas o que dizer, então, do outro, que roubou, que estuprou uma inocente? Esse não precisa responder por seus atos monstruosos? Esse é vítima?

Fecho com o próprio Mencken, que não deixou escapar tal contradição, e foi irônico com sua própria afirmação anterior sobre o livre-arbítrio inexistente:

Mas agora começo a pensar que chapinhei longe demais na água benta das ciências sagradas, e que é melhor dar o fora antes que me esfolem. Essa prudente retirada é puramente determinística. Não a atribuo à minha própria sagacidade; atribuo-a inteiramente àquela singular gentileza que o destino sempre me reserva. Se eu fosse livre, provavelmente continuaria a escrever – e depois me arrependeria.