“Não há como escapar das inexoráveis leis do mercado.” (Ludwig von Mises)
Uma das maiores inverdades já propagadas pela esquerda diz respeito as causas da longa crise que assola os nossos vizinhos argentinos. Culpam, na maior inversão de fatos já vista, o suposto liberalismo pela miséria que tomou conta do país. Vamos esclarecer essa questão, e mostrar como a realidade é outra: a ausência do liberalismo é que levou às ruínas a nação do tango! Antes seria oportuno voltarmos um pouco no tempo. O livro do chileno Mauricio Rojas sobre a crise nos serve de base aqui.
O período entre 1860 e 1930 compreendeu os anos dourados da Argentina. Milhões de imigrantes oriundos do sul da Europa rumaram para o país, e Buenos Aires transformou-se numa gigantesca metrópole, assim como capital cultural da América hispânica. O foco estava na exportação, e a Argentina era o celeiro do mundo. O valor total das exportações multiplicou-se mais de 13 vezes entre 1865 e 1914. Os investimentos britânicos foram especialmente importantes. O padrão de vida do argentino estava entre os melhores do mundo, e uma próspera classe média surgiu. Mas nem tudo que reluz é ouro, e como Gregor Samsa, na obra de Kafka, a Argentina foi dormir bem mas acordou um inseto feioso, fruto de uma metamorfose.
A burocracia estatal no país crescia rapidamente, tendo mais que triplicado o número de funcionários entre 1900 e 1929. O surgimento de uma retórica nacionalista exigia a intervenção política contra a competição de produtos importados. A guerra mundial primeiro, e a crise de 29 depois, geraram enormes dificuldades para o país, dependente da exportação de seus recursos naturais. Foram introduzidas tarifas protecionistas, que foram sucessivamente elevadas. A Argentina encontrava-se muito distante de ser um paraíso do livre comércio, como alguns acreditavam. O controle da máquina política tornou-se o elemento-chave para o sucesso ou fracasso dos negócios, incitando a formação de grupos de interesse na luta política, suplantando os mecanismos econômicos da competição. Após o golpe de 1943, o intervencionismo estatal rapidamente expandiu-se, culminando durante a presidência do populista Perón, de 1946 a 1955.
Perón era inspirado em Mussolini, e buscou inicialmente apoio nas bases sindicais. A proteção tarifária contra a importação de artigos de consumo foi elevada a níveis sem precedentes, e quotas também foram introduzidas. O coronel baixou grande número de decretos conferindo vastos benefícios para os trabalhadores. A longo prazo, estas e outras medidas demagógicas de Perón e sua esposa, Eva, lastrearam o declínio espetacular da Argentina como nação exportadora, e lançaram a nação no caos hiperinflacionário. A indústria de base estava totalmente sucateada, sem condições de competir globalmente. Algumas empresas foram nacionalizadas, e outras foram criadas pelo setor público, gerando déficits estratosféricos, que somaram algo como US$ 50 bilhões entre 1965 e 1987.
Um culto à personalidade emergiu, como em ditaduras. Foi posta em marcha uma “peronização” do Estado argentino, com opositores sendo perseguidos. Uma nova Constituição foi adotada em 1949, e a doutrina social do “justicialismo”, derivado de “justiça social”, tornou-se o fundamento ideológico da nação. As despesas públicas explodiram, mais que dobrando em relação à renda nacional. A corrupção e a briga por privilégios tomaram proporções alarmantes, por conta do modelo estatal. A conseqüência disso tudo foi, logicamente, a aceleração brutal da inflação.
Desde então a Argentina nunca mais seria a mesma. Houve um risco de guerra civil, e após a ameaça da marinha de bombardear o palácio presidencial, Perón renunciou, em 1955, deixando o país. Entretanto, o peronismo lá ficou. Mauricio Rojas afirma: “A Argentina não tem uma cultura democrática, mas sim uma força política chamada peronismo, que ou governa ou torna o país ingovernável”. O papel asfixiante do Estado estaria sempre pesando sobre os ombros do povo, e a competitividade das empresas havia desaparecido. Entre 1958 e 1968, as exportações argentinas cresceram menos de 1% anualmente, enquanto o comércio mundial cresceu 7,8% por ano, no mesmo período. O neomercantilismo afundou de vez aquela que já foi a mais próspera nação da região.
Alguma reação ocorreu quando Alfonsin assumiu o poder, encontrando uma inflação na marca dos 400% anuais, e uma dívida externa superior a US$ 40 bilhões, exigindo pesados pagamentos de juros. No começo, o novo presidente adotou a veia populista, e a situação piorou ainda mais. Mas em 1985, ele declarou o estado econômico de guerra e anunciou um novo plano econômico, o Plano Austral. O déficit orçamentário foi reduzido, mas isso não adiantava muito, já que os déficits das províncias explodiram no mesmo período. La Rioja, por exemplo, uma pobre região sob o comando de Carlos Menem, viu o número de funcionários públicos sair de 12 mil para mais de 40 mil entre 1983 e 1989.
Quando o próprio Menem foi eleito presidente, para a surpresa de todos, sua bandeira peronista foi deixada um pouco de lado em troca do bom senso na economia. Mas suas medidas não bastaram para estancar a sangria desatada do Estado. Rápidas privatizações foram realizadas, a toque de caixa e com fortes acusações de corrupção. Ocorreram cortes nos empregos e gastos públicos. Foram abolidos controles de preços, e o Plano Bonex confiscou as poupanças privadas em moeda nacional, para enxugar a liquidez e combater a inflação. Restrições às importações foram abolidas. Com estas medidas mais liberalizantes, um forte processo de crescimento econômico ocorreu, e em 1998 a economia argentina era 50% maior do que em 1990.
Mas era muito pouco, muito tarde, e a Argentina iria colher as sementes plantadas no passado. A corrupção já havia se alastrado como uma epidemia pelo país, e o próprio governo Menem sofreu sérias acusações, incluindo envolvimento com a máfia. O esforço de controle de gastos do governo central seria ofuscado pela gastança irresponsável das províncias, que emitiam títulos o tempo todo para pagar os funcionários públicos e cobrir seus rombos. Segundo Álvaro Vargas Llosa, as transferências federais para as províncias aumentaram 33% entre 1994 e 2000. O modelo de conversibilidade da moeda gerou a supervalorização do peso, reduzindo a competitividade do país, ainda mais agravada após a desvalorização do Real em 1999. O financiamento externo, que garantia a sobrevida desse modelo, evaporou-se após a crise asiática em 1997. As leis trabalhistas, da época de Peron, continuavam limitando os ganhos de produtividade na economia. Enquanto isso, nos anos de 1999 e 2000, o endividamento das províncias cresceu uns 50%.
O colapso argentino era iminente. Suas causas podem ser rastreadas desde o passado peronista, com um Estado cada vez mais presente na economia. O “mercado” não foi causa de crise alguma, apenas foi um termômetro para apontar a febre alta do paciente, já muito doente por conta da asfixiante estatização. O “neoliberalismo” não foi o responsável pela bancarrota argentina, mas sim a gastança estatal descontrolada, assim como o excesso de intervenção econômica. O choro da Argentina foi mais um exemplo das nefastas conseqüências da falta do livre mercado, cedendo lugar ao poder arbitrário do Estado, sempre em nome da “justiça social”.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.
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