O discurso do escritor Luiz Ruffato na abertura da feira de livros de Frankurt, cujo homenageado esse ano é o Brasil, causou forte reação. Foi ovacionado por cerca de um minuto, com alguns aplaudindo de pé. Sinal dos tempos, quando artistas não falam de arte, mas de política, não tratam de temas atemporais e universais, apenas aproveitam o espaço para fazer proselitismo. Nelson Rodrigues vomitaria em vez de aplaudir de pé.
O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O Brasil é um exemplo de capitalismo selvagem? Não! O Brasil é um exemplo de capitalismo de estado, de patriomonialismo, de semi-socialismo, de clientelismo, tudo, menos capitalismo selvagem. O grau de intervenção estatal por aqui beira o absurdo total. O estado se mete em tudo, cuida de tudo, controla tudo, e arrecada metade de tudo. Capitalismo selvagem? Menos…
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
O que seria dos proselitistas sem a vitimização eterna? O autor não cita que os “índios”, já assimilados e tudo mais, controlam hoje quase 13% de todo território nacional, a festa dos líderes oportunistas e dos corruptos da Funai. A miscigenação é uma conquista nossa, ainda que, em parte, obtida por métodos condenáveis. O fato é que, hoje, o povo é misturado, pardo. Em vez de celebrar isso, o autor prefere vender uma segregação racial que não interessa a ninguém de fato, à exceção da elite dessas “raças” e etnias que se aproveitam dos privilégios estatais.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania –moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade–, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém…
Nossa, parecia um discurso do PSOL em campanha política. Até quando essa gente vai usar a “elite” branca como responsável por todos os males do país? E falar em proprietários de terras ainda? O MST é um enorme latifundiário, assim como os próprios índios, e o governo também. Não obstante, a agropecuária, com menos de 30% do território, é responsável pelo crescimento econômico, por gerar riquezas e empregos, ao contrário dos assentamentos que mais parecem favelas rurais.
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios –o semelhante torna-se o inimigo.
Percebe-se. O autor criou vários inimigos no semelhante. Basta ser branco e ter alguma renda razoável para ser parte dos problemas, segundo ele. Quanto à impunidade, tem que dizer isso para os petistas, que conseguiram até embargos infringentes agora, postergando a punição do mensalão. Concordo que precisamos acabar com a impunidade e instaurar o império das leis isonômicas, independente de renda, classe, “raça” ou gênero. Bandeira liberal dos capitalistas, aliás.
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.
Paradoxalmente, após vender uma ideia de sociedade totalmente estanque com um regime de castas, ele mesmo diz que veio de muito baixo e virou parte da elite que tanto condena. Mobilidade social. Podia ser muito maior, não tenho dúvida. Se o modelo fosse efetivamente capitalista, que ele condena, e não esse intervencionismo estatal asfixiante que só favorece os amigos do rei.
Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro –seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual– como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir.
Ruffato condena o culto ao individualismo e oferece como solução categorias coletivistas. O fascínio pelo reconhecimento mútuo deveria ser entre indivíduos, não? O autor cai em contradição, pois aponta um individualismo exacerbado, e diz que isso é responsável por não enxergarmos o “outro” , seja o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual.
Ora, fosse mesmo um povo individualista, cada um enxergaria indivíduos, não constructos abstratos. Quem é “o negro”? Quem é “o homossexual”? Eu não os conheço. Conheço apenas negros, gays, mulheres, todos bastante diferentes entre si. Afinal, sou individualista, não coletivista como o escritor.
Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.
Calafrios. É o que sinto sempre que estou diante de alguém que deseja “transformar o mundo”, vender utopias, mudar a humanidade. Confesso preferir escritores como Mario Vargas Llosa, que querem contar uma boa história, fazer arte, literatura, e não “mudar o mundo” e criar uma utopia feliz para o aqui e agora. Proselitismo não é arte, política escancarada não é literatura. E tenho dito!
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