Cada um tem sua própria visão do inferno. Pode ser dantesco, pode ser Cuba – uma linda ilha promissora sob uma tirania assassina. A minha é um estado burocrático que me asfixia com regras e normas infindáveis. Ou seja, o Brasil…
Não suporto essa República Cartorial, essa dificuldade em conseguir coisas que, em países mais civilizados, decorrem de forma infinitamente mais simples. O tempo escasso, que poderia estar sendo canalizado para a leitura, para a escrita, para o lazer, acaba sendo destinado a resolver “pepinos” que sequer deveriam existir.
E não falo apenas do governo. Claro que é o maior responsável pela situação calamitosa. Mas parece que a cultura da burocracia está entranhada em nossa sociedade. Ao contrário da “sociedade de confiança”, de que falava Alain Peyrefitte, vivemos na sociedade da desconfiança. Há malandros demais para otários de menos. Todos são culpados até que provem o contrário.
O poeta Ferreira Gullar falou do assunto em sua coluna desse fim de semana na Ilustrada. Relata um fato pessoal que mostra bem a coisa:
Um pequeno exemplo foi o que ocorreu comigo no banco onde recebia minha aposentadoria. Ia lá todo mês, apresentava meu cartão de aposentado, a carteira de identidade e recebia o dinheiro.
A senhora que me atendia já sorria para mim quando eu chegava ao guichê, reconhecendo-me. Mas eis que um dia esqueci a carteira de identidade e essa mesma funcionária não me pagou a aposentadoria.
Argumentei: mas a senhora me conhece, recebo esse pagamento de suas mãos todos os meses. E ela: “Sim, claro, mas mediante a apresentação de sua carteira de identidade; sem ela, de acordo com as normas do banco, não posso pagar”. E não pagou.
O problema são as normas, seja do banco, seja do INSS, seja do Ministério da Fazenda, seja do inferno. Quando me chega uma carta de qualquer dessas entidades, entro em pânico: é aporrinhação na certa.
Quem nunca passou por isso? É surreal demais. O sujeito não consegue nem acreditar. Mais um caso, agora com terceiros, relatado por Gullar:
Outro dia soube de mais uma: um pequeno produtor de cinema conseguiu aprovar pela Lei Rouanet o projeto para um filme, mas antes de terminá-lo, achou que era melhor mudar-lhe o nome.
Quem disse que pôde? A resposta dos burocratas foi a seguinte: se trocar o nome do filme, perde o financiamento, vai ter que entrar com outro pedido que será aprovado ou não. Como tinha levado quase um ano para conseguir a aprovação do tal projeto, desistiu de mudar o nome do filme.
Bizarro é pouco! Para fechar o desabafo, conto um caso meu. Abri minha empresa de consultoria, já um parto burocrático. Quando fui abrir conta no banco, surpresa! Nome no SPC por conta de uma empresa de telefonia. De São Paulo (sou do Rio). Detalhe: é o mesmo banco onde já possuo minha conta na pessoa física, há anos, sem jamais ter tido um mísero problema.
Não importa: o processo burocrático do backoffice do banco impede a abertura da conta. Não há uma análise qualitativa para verificar o absurdo da coisa. Regra é regra, e a burocracia está aí para facilitar a vida dos empregados, eximindo-os de responsabilidade por um julgamento mais subjetivo e pessoal. Dane-se que o banco perca uma conta boa que nunca trará problemas.
Ok, aceitamos a burocracia do banco. Então vamos resolver com a operadora de telefonia, certo? E pensa que é fácil? Veja: são cinco dias só para a ouvidoria dar uma resposta sobre do que se trata o problema, uma vez que nunca deixei de pagar uma conta, tampouco fui notificado de alguma em atraso. Precisam verificar se houve erro deles ou não. Isso depois de vários minutos para conseguir falar com a pessoa certa e responsável pelo assunto na empresa.
Passam os cinco dias e… nada! Ainda não sabem a resposta, e agora o prazo é indeterminado. Note o absurdo da coisa: estamos falando de um valor irrisório, que tem impedido a abertura da conta da empresa no banco, que vai girar somas muito maiores.
Se for o caso, só para não perder tempo ou me aporrinhar, estou disposto até mesmo a pagar a quantia, ainda que seja um pagamento dobrado por erro deles. Qualquer coisa para eliminar o problema. Que emitam logo um código de barras para eu quitar o valor e seguir com minha vida!
Pergunta se podem? Não podem. Antes, precisam descobrir o que aconteceu. Não podem dizer quanto tempo isso vai levar. E até lá, eu que fique sem a conta no banco, sem poder receber por serviços prestados…
O Brasil é realmente de enlouquecer qualquer pessoa sã. Às vezes tenho a sensação de que sou um personagem de um livro de Kafka, ou então um palhaço como Jim Carrey em The Truman Show, onde tudo não passa de uma grande pegadinha para testar minha reação e divertir a audiência.
Narcísico demais, eu sei. Mas é que custo a crer que tenhamos criado uma sociedade tão absurda e burocrática como essa. A quantidade de pessoas sãs deve ser, então, bem menor que a de loucos, para termos chegados a esse ponto. Não pode ser tudo apenas lobby de despachantes…