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Já escrevi aqui uma resenha do instigante livro Adam and Eve After the Pill, de Mary Eberstadt, que trata do lado negro da revolução sexual. Agora pretendo focar apenas em um capítulo interessante, onde a autora traça um paralelo entre sexo e comida, argumentando que seus papeis se inverteram completamente nas últimas décadas.

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De certa maneira, sexo e comida guardam algumas similaridades. Ambos foram sempre alvo de regulações formais ou informais nas diferentes sociedades. Até usamos o verbo “comer” para falar do ato sexual. As religiões deram importância à comida, mas Eberstadt argumenta que nunca antes na história da humanidade ela foi um fim em si, uma espécie de substituta das próprias religiões, como é hoje.

Eberstadt coloca a seguinte questão: o que acontece quando, pela primeira vez na história nas nações desenvolvidas, os adultos são livres para desfrutar de todo o sexo e toda a comida que quiserem? A resposta, argumenta, é que costumam adotar posturas bem diferentes, que sinalizam uma alimentação consciente e sexo sem restrição ou sentido. Isso principalmente entre as pessoas mais “sofisticadas” da elite.

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Nos últimos 60 anos os pólos eram exatamente opostos. A autora utiliza um exemplo hipotético de uma avó nos anos 1950 e sua neta no presente, ambas com 30 anos. A avó não dava muita importância à alimentação, ao menos não da forma que sua neta dá hoje. Por outro lado, o sexo era algo muito sério para ela.

Em outras palavras, o sexo era visto pela avó como parte de um código moral, e seu imperativo categórico kantiano era extrapolar o que via como um comportamento sexual correto aos demais, universalizando o conceito de certo ou errado do ponto de vista sexual. Havia todo um estigma em quem saísse dessas regras. Nada parecido existia em relação à comida.

Já a neta adota visão contrária: seu imperativo categórico kantiano é voltado para a alimentação, onde há um código moral que separa o certo e o errado, enquanto o sexo é visto como pura questão de gosto e preferência pessoal. Ninguém tem nada com a vida sexual alheia, mas muitos demonstram ojeriza diante de pessoas que não adotam um estilo “correto” de alimentação.

Um escrutínio maior e crescente existe sobre aquilo que ingerimos por nossas bocas. Surgiu algo inusitado: um código moral universal sobre escolhas alimentares. Verdadeiras seitas nasceram, como a dos veganos, por exemplo, garantindo uma sensação de superioridade moral àqueles que se alimentam “melhor”, de forma mais “saudável”, mais “consciente”.

Em qualquer lugar que você vai, para onde quer que você olhe, a comida se destaca, especialmente para os mais “sofisticados”. O chef de cozinha virou um popstar. Os alimentos orgânicos se tornaram uma obsessão. O repúdio ao “junk food” é total, análogo talvez ao que um depravado sexual despertava nas senhoras no passado. O vegetarianismo virou um dos movimentos morais seculares mais bem-sucedidos do Ocidente, estimulado por Peter Singer.

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Em muitos aspectos, as diferenças sobre alimentação assumiram o lugar de diferenças cismáticas sobre a fé, capazes de rachar grupos e destruir amizades. Durante toda a história, ninguém devotou tanta atenção assim à questão da comida como uma ideia ou crença (ao contrário, por exemplo, do tempo dedicado para encontrá-la).

A tese da autora é que, observando o mundo atual, ficamos tentados a afirmar que quanto mais veementes as pessoas são sobre as escolhas alimentares, mais libertárias e desprendidas elas acreditam que o restante do mundo deveria ser sobre o sexo. A comida é o novo sexo.

Mas isso, se for verdade, levanta um paradoxo interessante: enquanto as pessoas dedicam cada vez mais atenção, ao menos na teoria, ao que comem, em nome da saúde física, elas acabam agindo de maneira cada vez mais indiscriminada e inconsciente quando se trata de sexo. O slogan “você é o que você come”, bastante popular atualmente, não encontra paralelo na questão sexual.

Se o “junk food” desperta aversão, o “junk sex” desperta cada vez mais indiferença ou até admiração. Se o vício antes era mais voltado para o descontrole do apetite sexual, hoje é voltado para o descontrole do apetite alimentar. Basta um teste para verificar isso: quando foi a última vez que o leitor usou a expressão “culpa”? Para se referir ao excesso de comida ou a algum ato sexual impensado?

Dráuzio Varela usa sua coluna na Folha com freqüência para alertar seus leitores do risco do tabaco e da má alimentação, prejudicial à saúde. Neste sábado mesmo fez isso, concluindo: “A menos que você tenha certeza de que ao despedir-se deste vale de lágrimas será recebido por um coro de anjos de cabelos encaracolados, não perca tempo: aumente a atividade física e reduza o número de calorias ingeridas. Você não precisa comer tanto”.

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Só não esperem recomendações desse tipo quando o assunto for sexo. Ao contrário: o hedonismo, o total desprendimento, o abuso, o excesso, a libertinagem, o swing, até mesmo as orgias e bacanais não serão censurados, mas estimulados e incentivados como coisas modernas e progressistas, e quem discordar só pode ser carola, preconceituoso, reacionário, antiquado.

Para o bem ou para o mal, dependendo do ponto de vista, parece que a autora tocou em um ponto verdadeiro: o sexo de ontem é a comida de hoje, e a comida de ontem é o sexo de hoje.

Rodrigo Constantino