Algo está acontecendo. De Bagdá a Hong Kong, de Santiago a Barcelona, cidades ao redor do mundo têm visto grandes protestos nas últimas semanas. Cada caso é um caso, claro. Mas, como diz Adam Taylor, do Washington Post, "há também algumas semelhanças surpreendentes entre alguns dos protestos, que compartilham os temas de indignação com a economia e falta de esperança com a política".
"Até agora, essa ampla gama de protestos não chegou a derrubar um governo, embora em alguns lugares eles estejam chegando perto. Os custos, em termos não apenas de perdas econômicas, mas também de derramamento de sangue, ainda pode aumentar exponencialmente", conclui o autor.
Gustavo Nogy, aqui na Gazeta do Povo, chamou de "era dos protestos" essa nova realidade, e admitiu, com humildade, não saber ao certo as reais causas do fenômeno. Ele desconfia de quem diz o contrário e acha que entendeu o que está acontecendo.
Cada grupo ideológico busca reduzir o fenômeno a uma causa simplista, de acordo com sua preferência. "Intérpretes da direita atribuem o caos à esquerda: a balbúrdia seria uma espécie de sabotagem com fins políticos muito determinados. Analistas de esquerda se apressam no diagnóstico fácil: tudo se deve ao esgotamento do modelo liberal, que deixou desamparadas milhares de pessoas", escreve sobre o caso chileno. O fato é que um milhão de pessoas tomarem as ruas de Santiago é mesmo um espanto num país com 18 milhões de habitantes. É como se mais de 12 milhões de brasileiros fossem às ruas!
"Os indicadores apontam o Chile como o país que mais cresce na América do Sul. Se o Brasil fosse um pouquinho mais chileno, soltaríamos fogos – e não tocaríamos fogo – nas ruas", diz Nogy. Por isso mesmo ele acha que é possível não haver uma explicação única, uma causa, um motivo concreto. A representação política anda em baixa, o que acaba se agravando nos tempos das redes sociais. "Quem hoje comemora qualquer insurreição popular, talvez amanhã chore a eleição de fascistas de esquerda e de direta. Não nego nem menosprezo o direito à rebelião, por óbvio, mas temo as consequências da uma certa demagogia", conclui.
Concordo. Os grupos extremos de cada lado nessa polarização crescente vibram quando as multidões tomam as ruas contra seu adversário ideológico, mas é o método que assusta - ou deveria, ao menos todo conservador calejado. Edmund Burke, que era um liberal Whig, virou o "pai do conservadorismo" moderno justamente quando viu a ameaça jacobina sacudir a França, vizinha de sua Grã Bretanha.
Movimentos de massas revoltadas nas ruas são sempre algo perigoso, pois geram instabilidade institucional e risco de derramamento de sangue e tirania. Há quem festeje o "povo" no poder dessa forma, mas isso raramente acaba bem.
Gustave Le Bon, em seu livro sobre a psicologia das multidões, escreveu: "Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto".
Talvez o gênio já tenha saído da garrafa e não seja mais possível coloca-lo lá dentro novamente. Talvez a única alternativa seja escolher a "tribo" menos pior nessa polarização, tentar influenciar a "manada" na direção que consideramos melhor. Mas quero crer que não. Quero acreditar que nem tudo esteja perdido, que as democracias liberais representativas ainda podem melhorar, evoluir, eliminar erros evidentes e se aproximar do eleitor, do povo. A alternativa é assustadora.