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Por João Cesar de Melo, publicado pelo Instituto Liberal
Esta crônica é uma continuação de Isentino Kaiowá vai ao Rock in Rio.
No começo de dezembro, Isentino foi devastado pela notícia de que seu grande amor iria se casar. Já fazia um bom tempo que ela havia se transformado na grande decepção de sua vida. De feminista marxista revolucionária nos tempos da faculdade, bastou se formar para se transformar em decoradora de apartamentos da burguesia paulistana. Declarou voto em Bolsonaro logo que conheceu um sujeito tão burguês quanto ela, um desses empresários que exploram dezenas de trabalhadores.
Para reconstruir a liberdade de seus sentimentos, Isentino reuniu seus melhores amigos num badalado restaurante japonês. Que noite linda! Conversaram sobre arte, sobre ecologia e sobre a ditadura que se instalou no Brasil. Listaram as atrocidades cometidas por Jair Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. “Frases matam!”, um deles comentou. “Estão comemorando a redução de 22% no número de assassinatos, mas e os 85% de negros, gays e mulheres que continuam sendo exterminados?!”, acrescentou Isentino, provocando manifestações semelhantes de seus amigos.
Entre um sushi e outro, Isentino decidiu que não passaria o Natal com a família. “É uma forma de resistência a esse movimento conservador nazista que Bozo representa”, explicou. Mais uma vez, seus amigos concordaram, elogiando sua coragem.
Isentino decidiu também que iria entrar logo de férias. Iria para a Bahia! Dois de seus amigos lamentaram não poder ir – um faria um mochilão na Europa e o outro iria passar um tempo em Cuba, “absorvendo o espírito socialista”, nas palavras dele. Mas os outros dois disseram que iriam.
Ali mesmo, abriram seus Iphones para comprar as passagens. Isentino, no entanto, nem precisou pagar pela sua: trocou pelas milhas que havia ganho no programa de fidelidade do cartão de crédito. “Pelo menos para isso o capitalismo serve!”, ironizou.
Um dos amigos questionou o alto preço da passagem. O outro respondeu com firmeza: “se ficarmos presos a esses cálculos burgueses, não construiremos um mundo melhor”. Todos concordaram e pediram mais uma rodada de saquê.
Do restaurante, foram para o apartamento de Isentino. Algumas meninas chegaram. Fumaram um, dois, três baseados… Pelo celular, pediram um bolo de chocolate às 3 horas da manhã. Dez minutos depois, enquanto reafirmavam a necessidade de lutar contra o capitalismo, o bolo já estava sendo entregue.
Isentino acordou de ressaca. Pelo celular, pediu um remédio. Dez reais, entregue em dez minutos. A dor de cabeça passou.
Sobre a cama, Isentino jogou as roupas que levaria para a Bahia. Todas de grifes caras e famosas, mas que ele fez questão de cortar as etiquetas para não parecer burguês. Aproveitou a tesoura na mão para fazer uns cortes numa calça e numa camisa, para ficar bem descolado. Em vez de algum de seus pares de tênis caríssimos, Isentino achou mais apropriado levar apenas um par de sandálias.
Isentino é um espírito livre!
Dois dias depois, Isentino e seus amigos desembarcavam para Porto Seguro.
Por um aplicativo de carona, conseguiram transporte até a vila de Abaporu Mirim. “Eis a prova de que podemos viver sem o lucro!”, Isentino comentou. O motorista questionou: “ Vocês estão apenas dividindo a gasolina comigo, mas isso me ajuda a diminuir meus gastos, o que aumenta meus lucros na empresa que tenho na cidade”. Ninguém prestou atenção ao que ele disse. Isentino e seus amigos estavam maravilhados com a paisagem, com a natureza, já preocupados em comprar maconha.
Chegando em Abaporu Mirim, ficaram encantados com a simplicidade das coisas e das pessoas, aquela pobreza cheia de poesia, as ruas esburacadas, quase nenhum comércio, metade dos moradores dependentes do Bolsa Família… “Quanta paz! Quanta dignidade!”, exclamou.
Isentino e seus amigos poderiam pagar diárias em boas pousadas, mas preferiram algo mais original. Por uns trocados, alugaram um quarto sem qualquer conforto numa casa de família. Por ter idealizado a viagem, Isentino exigiu dormir na cama. Seus amigos dormiram no chão.
Depois de instalados, procuraram um lugar para beber. Acharam um bar bacana, bonito e limpo, mas com alguns turistas. Não era isso que eles queriam. Isentino e seus amigos têm outra visão de mundo. Não queriam contato com pessoas que só viajam para sugar as belezas dos lugares. Isentino e seus amigos queriam se integrar à comunidade, absorver delas um pouco de magia e deixar em troca consciência política e ecológica.
Andaram mais um pouco e acharam um boteco sujo, improvisado num barraco de madeira. Perfeito! Além da cerveja ser barata, em poucos minutos apareceu um sujeito super gente boa que foi logo se prontificando a conseguir qualquer tipo de drogas que eles quisessem. Que sorte!
Passados uns dias, os três amigos procuraram outro lugar para dormir. Não aguentaram as noites sem ar-condicionado. Desta vez, hospedaram-se numa pousada cara e bacana, na frente da praia, que tinha entre seus hóspedes alguns artistas da Globo e ainda era frequentada pelo amigo traficante. A magia estava do lado deles!
As semanas foram passando com eles estabelecendo uma rotina de praia, maconha, cerveja e peixe barato noutro bar sujo, debaixo dos coqueiros. À tarde, mais maconha, mais cerveja e mais comida barata. Para abrir o apetite para o jantar, mais um baseado. Para dar um gás na noite, duas carreiras de cocaína e mais algumas cervejas. Entre tudo isso, com a mente bastante expandida, Isentino e seus amigos discutiam os rumos do país, as ameaças de Trump à paz mundial, a intolerância religiosa, o machismo, a homofobia e a postura heroica do Irã contra o império estadunidense. Discutiram também a necessidade de legalização do aborto e de um projeto de proteção a uma nova espécie de besouro descoberta naquela região.
No meio de uma dessas conversas, Isentino resolveu atender a um telefonema do síndico de seu prédio, que estava há vários dias tentando contato.
“Putz, esqueci de pagar o condomínio! De novembro, de dezembro e de janeiro!”, comentou. Os três caíram na gargalhada. “Golpista de merd@!”, gritou Isentino.
Pediram mais uma cerveja. Acenderam outro baseado. Abriram outra cerveja. Então, Isentino pediu silêncio.
“Oi mãe, tudo bem? Como estão as coisas aí? E o pai? Tudo certo? Que bom… É que preciso de uma ajuda: pagar o meu condomínio. Eu me esqueci”.
Ela reclamou, mas disse que pagaria.
“Minha mãe é muito boa. Uma pena que tenha votado no Bolsonaro”, comentou, motivando seus amigos a reclamarem da mesma coisa sobre seus pais.
Isentino acabou se lembrando de que não entregou um projeto para um cliente. “Fod@-se! Bolsonarista de merd@!” Os três gargalharam mais uma vez.
Neste clima de debate de ideias e de resistência à ditadura nazifascista de Jair Bolsonaro, Isentino adiou pela terceira vez sua passagem de volta a São Paulo. Vai emendar com o carnaval.
Isentino Kaiowá é um espírito livre!