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Por João Luiz Mauad, publicado pelo Instituto Liberal
De uma hora para outra, John Stuart Mill virou ícone da esquerda, dos left-libs e até de alguns liberais tupiniquins. Vários textos e comentários em redes sociais apontam para o pensamento do filósofo britânico como justificativa para toda e qualquer ação arbitrária e/ou autoritária dos nossos governantes contra alguns direitos individuais básicos, desde mandados de fechamento de empresas, passando por quarentenas de pessoas sadias, até a vacinação compulsória. Para esses, tudo isso seria justificável, de acordo com a seguinte passagem, em On Liberty:
“O único propósito para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos a outros. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificativa suficiente.” (On Liberty, Cap. 1 – 1859)
Como sói acontecer, a grande maioria dessas pessoas jamais leu a obra em questão. Caso tivessem lido, saberiam que John Stuart Mill enfrenta a questão nos dois últimos capítulos da obra, deixando claro que a tal legitimidade está restrita a algumas poucas exceções e não é, de maneira nenhuma, automática como gostariam muitos. De fato, Mill se preocupa deveras com a possibilidade de abuso daquele poder ou a interpretação elástica daquele postulado, principalmente porque é quase impossível que alguma ação ou decisão de alguém não interfira com os interesses de outros. Senão, vejamos…
No capítulo IV, que versa justamente Sobre os limites da autoridade da sociedade sobre o indivíduo, o filósofo ensina que “Muitas pessoas recusarão aceitar a distinção aqui salientada entre a parte da vida de uma pessoa que diz respeito apenas a ela e a que diz respeito a outras. Como (perguntar-se-á) pode qualquer parte da conduta de um membro da sociedade não ter qualquer interesse para os outros membros? Nenhuma pessoa é um ser inteiramente isolado; é impossível uma pessoa fazer qualquer coisa grave ou permanentemente danosa para si, sem que daí resultem más consequências, pelo menos para os que lhe estão mais próximos, e frequentemente muito para além deles. Se faz algo prejudicial aos seus bens, faz também mal aos que, direta ou indiretamente, obtêm o seu sustento desses bens, e geralmente diminui, numa quantidade maior ou menor, os recursos gerais da comunidade.
Se deteriorar as suas faculdades mentais ou corporais, não faz apenas mal a todos os que dependiam dela para qualquer porção da sua felicidade, mas torna-se inapta para prestar os serviços que deve, de um modo geral, aos seus semelhantes; torna-se talvez um fardo para a sua simpatia e a sua benevolência; e se tal conduta fosse muito frequente, dificilmente qualquer ofensa cometida diminuiria mais a soma geral de bem. Finalmente, se pelos seus vícios e atos insensatos uma pessoa não causa qualquer mal direto a outros, causa, ainda assim (pode dizer-se) dano pelo seu exemplo; e deve ser obrigado a controlar-se, para bem daqueles que podiam ser corrompidos ou desencaminhados ao observar ou tomar conhecimento da sua conduta. (…)
Mas em relação ao dano meramente contingente ou, como pode ser chamado, estrutural, que uma pessoa causa à sociedade através de conduta que nem viola qualquer dever específico para com o público, nem dá azo a danos perceptíveis para qualquer indivíduo definido senão ela mesma, a sociedade pode dar-se ao luxo de suportar essa inconveniência, tendo em vista o bem maior da liberdade humana. Se fosse para punir adultos por não tomarem bem conta de si, preferia que fosse para seu próprio bem, e não com o falso pretexto de os impedir de diminuir a sua capacidade de prestar à sociedade benefícios que esta não finge ter o direito de exigir.” (op. cit. cap. 4)
Tal passagem claramente nos informa que abusos em relação ao álcool (e outras drogas) ou ao jogo, por mais que possam afetar outros indivíduos, não devem ser coibidos pela lei. Mas Mill não para por aí. O parágrafo seguinte é, por assim dizer, uma ducha de água fria nos proibicionistas e obrigacionistas de plantão.
“Mas, sem nos determos em casos hipotéticos, são presentemente praticados, de fato, grosseiros abusos à liberdade da vida privada, e outros abusos ainda maiores ameaçam ser bem-sucedidos, e são propostas opiniões que defendem que o público deve ter um direito ilimitado não apenas para proibir por lei tudo o que acha errado, mas também para, visando atacar tudo o que pensa errado, proibir um sem número de coisas que aceita serem inocentes.” (op. cit. cap. 4)
Mill passa então a analisar alguns casos particulares – não, não há nada sequer similar a lockdowns, quarentenas de pessoas saudáveis ou vacinação compulsória, até porque o livro já tem mais de 150 anos -, não sem antes fazer algumas ressalvas importantes:
“Os princípios defendidos nestas páginas têm de ser mais geralmente aceites como base para a discussão de pormenores, antes de se poder tentar aplicá-los consistentemente a todas as diferentes áreas do governo e dos costumes com quaisquer perspectivas de benefícios. As poucas observações que pretendo fazer sobre questões de pormenor pretendem ilustrar os princípios e não tanto segui-los até as suas consequências. Oferecem-se não tanto aplicações, mas sim exemplos de aplicações; que podem servir para esclarecer o significado e os limites das duas máximas que juntas formam toda a doutrina deste ensaio, e para auxiliar o juízo a manter o equilíbrio entre elas, nos casos em que parece duvidoso qual delas é aplicável. As máximas são, em primeiro lugar, que o indivíduo não é responsável perante a sociedade pelas suas ações caso estas não digam respeito aos interesses de qualquer outro indivíduo senão ele mesmo. A sociedade só pode justificadamente expressar o seu desagrado ou desaprovação pela sua conduta através de conselhos, ensinamentos, persuasão e o evitar da sua companhia por parte de outros se o acharem necessário para o bem deles próprios. Em segundo lugar, que o indivíduo é responsável pelas ações que são prejudiciais para os interesses dos outros, e pode ser sujeito tanto a punições sociais como legais, se a sociedade for da opinião de que uma ou outra são necessárias para a sua proteção. Em primeiro lugar, de modo algum se deve supor que, dado que só porque o dano para os interesses de outros — ou a probabilidade elevada de haver dano — pode justificar a interferência da sociedade, isso significa que justifique sempre tal interferência.” (op. cit. cap. 5)
A parte final do parágrafo anterior demonstra de forma cristalina que a justificação de qualquer interferência do estado nos assuntos particulares não é automática e requer muito cuidado, até porque a liberdade individual para Mill é um valor elevadíssimo. O exemplo do próximo trecho detém uma analogia quase perfeita com a questão da posse de armas – algo que faria qualquer esquerdista corar de vergonha ao mencionar esta obra de Mill como justificativa de qualquer das arbitrariedades de que tanto gostam:
“Um dos exemplos, o da venda de venenos, abre uma nova questão; os limites adequados daquilo a que se pode chamar as funções da polícia; até que ponto se pode legitimamente abusar da liberdade para prevenir crimes ou acidentes. Uma das funções inquestionáveis do governo é tomar precauções contra o crime antes de ter sido cometido, bem como investigá-lo e puni-lo depois. No entanto, a função preventiva do governo é bastante mais passível de ser abusada, com prejuízo para a liberdade, do que a função punitiva; pois não há praticamente qualquer parte da legítima liberdade de ação de um ser humano que não seria passível de ser entendida, justamente, como algo que favorece uma forma ou outra de delinquência.
Se os venenos nunca fossem comprados ou usados senão para cometer assassínio, seria correto proibir a sua produção e venda. Mas podem ser pretendidos para fins não apenas inocentes mas também úteis, e não podem ser impostas restrições num dos casos sem fazer o mesmo no outro.” (op. cit. cap. 5)
Mais claro, impossível. A distinção entre as funções punitiva e preventiva é de suma importância aqui. A punição, desde que configurado o dano a terceiro, é praticamente automática, bastando para tanto a comprovação do dano ou da culpa. Já a função preventiva, que é aquela que nos interessa aqui de maneira objetiva, “é bastante mais passível de ser abusada”. Em outras palavras, e utilizando o exemplo do veneno/arma: não é porque um objeto qualquer pode ser utilizado de maneira incorreta ou danosa que a sua produção e venda deve ser proibida pelo governo como forma de evitar eventuais danos a terceiros.
Agora, para encerrar, a parte mais importante, que tem a ver com a vacinação compulsória:
“A liberdade do indivíduo tem de ter essa limitação; não pode prejudicar as outras pessoas. Mas se se abstém de importunar os outros no que lhes diz respeito, e age meramente de acordo com a sua própria inclinação e juízo em coisas que lhe dizem respeito, então as mesmas razões que mostram que a opinião deve ser livre provam também que lhe deve ser permitido agir com base nas suas opiniões a seu próprio custo sem ser importunado. Que a humanidade não é infalível; que as suas verdades, na maior parte dos casos, são apenas meias verdades; que a uniformidade de opinião, a não ser que resulte da mais plena e livre comparação de opiniões opostas, não é desejável, e que a diversidade não é um mal, mas sim um bem, são princípios aplicáveis tanto às condutas das pessoas como às suas opiniões, até a humanidade ter mais capacidade para reconhecer todos os lados da verdade do que hoje em dia. (…) (op. cit. cap 3)
Ainda assim, quando não há certeza, mas apenas perigo de haver más consequências, ninguém senão a própria pessoa pode avaliar a importância do motivo que pode levá-la a correr o risco: penso que neste caso, portanto (a não ser que se trate de uma criança, ou de uma pessoa que esteja em estado de delírio, ou nalgum estado de agitação ou concentração incompatível com o pleno uso da capacidade reflexiva), deve ser apenas avisada do perigo, e não impedida à força de se expor a ele.” (op. cit. cap. 5)
Alguma dúvida de que Mill jamais justificaria quarentenas de pessoas sãs, embora muito provavelmente apoiaria a quarentena compulsória de infectados? Alguma dúvida de que Mill jamais concordaria com a proibição de qualquer indivíduo exercer o seu ofício, em nome de alguma suposta possibilidade remota de que, estando são, pudesse infectar alguém? Alguma dúvida de que Mill jamais endossaria que o indivíduo fosse forçado pelo governo a inocular em seu corpo substâncias desenvolvidas às pressas, sem que tivesse absoluta convicção de que aquilo não lhe faria mal, somente porque os “sábios” e os “políticos” de plantão acham que isso é necessário para o bem geral e que, em não o fazendo, colocaria eventualmente em risco outras pessoas que aceitaram ser inoculadas? Eu duvido muito!