Já disse em outras ocasiões e repito aqui: meu maior problema com a ala olavista do bolsonarismo nem é com o diagnóstico que ela faz da guerra cultural ou da política mundial, mas sim com a receita apresentada, uma espécie de nacional-populismo com viés autoritário.
Os inimigos que aponta são reais, ainda que em tons exagerados muitas vezes. Ou seja, não sou daqueles que ridiculariza, por ignorância, quem fala em ameaça globalista ou destruição de valores morais por meio da agenda "progressista". Mas a resposta oferecida é um tiro no pé, uma espécie de comunismo com sinal trocado.
O debate promovido pela família Munk entre Steve Bannon e David Frum ano passado é muito esclarecedor sobre isso, e consta em livro. Para derrotar o inimigo, os reacionários estão dispostos a sacrificar junto tudo aquilo que deveríamos lutar para preservar, para conservar. Em especial o liberalismo.
Não por acaso os reacionários desprezam tanto os liberais, que consideram idiotas úteis dos comunistas. Não nego, novamente, que uma ala liberal seja mesmo inocente demais, ingênua e acabe atuando como massa de manobra da esquerda radical, que se finge moderada. Mas os "reaças" querem jogar fora o bebê liberal junto com a água suja do banho.
Tudo isso veio à mente ao ler o artigo do ministro Ernesto Araújo, publicado no site bolsolavista Terça Livre. Ele fala do "horizonte comunista" que ronda o continente, e desanca os liberais no processo. Seguem alguns trechos:
O “horizonte comunista”, a “ideia do comunismo” são a mesma coisa: mil maneiras de manter viva a ideologia comunista, tantas vezes derrotada pela realidade. Dizia Mao Tse Tung: “De derrota em derrota, até a vitória final.” Esse é o programa. Aproveitar as aparentes derrotas para fortalecer-se e seguir avançando. Pode-se argumentar que neste Século XXI o projeto comunista está mais forte do que nos anos 80, justamente porque ninguém o vê e pode operar à sombra da sociedade de consumo. Em lugar de combater o capitalismo em nome de uma alternativa socialista claramente fracassada, infiltrar-se de maneira sutil dentro do capitalismo.
Claro que a esquerda radical se adapta e parece não morrer nunca. Também é verdade que o melhor truque do Diabo é fingir que não existe, ou seja, quando todos acham que o comunismo de fato morreu, ele pode comer pelas beiradas. O líder socialista Norman Thomas já tinha profetizado, na campanha de 1948, que o povo americano adotaria cada parcela do programa socialista, mas sob o nome "liberalismo". Basta ver a radicalização do Partido Democrata para levar a profecia a sério.
Dito isso, meu problema com a tese do ministro, que Olavo de Carvalho repete faz tempo, é que se trata de uma dialética impossível de refutar. Afinal, a cada derrota acachapante dos comunistas o sujeito poderá alegar que eles se mostram ainda mais fortes! O Foro de SP tomou o poder em boa parte da América Latina? Prova da vitalidade comunista. Cada um deles foi retirado do poder, seus líderes acabaram presos e seus partidos derrotados? Prova da vitalidade comunista. Cara eu ganho, coroa você perde.
Vão já, portanto, quase trinta anos – mas os últimos 20 são especialmente significativos – em que o marxismo está cavando túneis por baixo da superfície aparentemente segura e tranquila da sociedade liberal. Os marxistas nunca se renderam a essa sociedade. Reúnem-se, pensam, programam, aplicam diferentes estratégias que vão solapando o mundo liberal-democrático, de diferentes modos, com diversas geometrias, explorando de forma inteligente e perversa as fragilidades do sistema liberal.
Não discordo, mas o sistema liberal talvez não seja tão frágil como os reacionários pensam, talvez tenha maior resiliência, pode ser até mesmo antifrágil, para usar o termo de Nassim Taleb. Afinal, já enfrentou inimigos piores, o mundo já flertou com os totalitarismos coletivistas de esquerda para valer, quase sucumbiu ao comunismo imperialista soviético, e o trio formado por Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Papa João Paulo II afastaram a ameaça, colocaram os vermelhos para correr. Não eram reacionários pregando receitas radicais ou autoritárias, mas sim conservadores com viés liberal (ou liberais com viés conservador, se preferir).
A principal fragilidade do sistema liberal é a seguinte: o sistema liberal não pensa. Não trabalha no mundo das ideias. Criou uma repulsa por tudo aquilo que chama de “ideológico”. Curiosamente, o sistema liberal em geral – e no Brasil os isentões em particular – aplicam a pecha de “ideológico” àqueles que procuram estudar o marxismo contemporâneo e entender seu “horizonte comunista”. Ou seja, os ideólogos que se esforçam dia e noite por criar os novos instrumentos do comunismo (e que publicam suas ideias em livros amplamente disponíveis) são ignorados e deixados trabalhar em paz, sob uma espécie de indiferença benigna por parte do establishment. Já os amantes da liberdade que lêem esses trabalhos marxistas para entender o novo projeto comunista e assim poder combatê-lo são chamados de “ideológicos”. O mundo isentão lida apenas com a figura fictícia de um certo comunismo “derrotado em 1989” e recusa-se terminantemente a reconhecer – muito menos a enfrentar – o projeto comunista real que atua hoje por toda parte. O isentismo é antes de mais nada uma forma de preguiça intelectual.
Eis o trecho mais revelador, preconceituoso e importante do texto. O ministro confunde aderir a uma ideologia com pensar, o que vai contra todas as lições importantes dos principais pensadores não liberais, mas conservadores mesmo! Russell Kirk não era um conservador? Não pensava no inimigo, em como derrota-lo? No entanto, não era ideológico, pois sabia que o conservadorismo foge de ideologias.
A fala do ministro trai sua mentalidade tribal, expõe o comunismo de sinal trocado, ao confessar sua ideologia. Os liberais lutaram muito, no campo das ideias, para derrotar a ideia comunista, o marxismo, e basta pensar em Mises, Hayek, Raymond Aron, Merquior, Isaiah Berlin, só para citar alguns. Do lado mais conservador, idem: Roger Scruton, Michael Oakeshott e tantos outros expuseram com maestria as falácias comunistas. Mas nem por isso aderiram ao reacionarismo ideológico e tribal.
Também é uma forma de acomodação. O isentismo não enfrenta o comunismo. Não chega nem perto. Não quer enfrentar. Não quer reconhecer que ele existe porque, se reconhecer, vai ter de fazer alguma coisa. Assim, o isentismo se inscreve confortavelmente dentro do horizonte comunista e, no dia em que o comunismo chegar e roubar-lhe a liberdade que ele acredita possuir de graça sem precisar lutar por ela, o isentão não vai nem perceber, pois sua cegueira ideológica – ou seja, sua cegueira para a ideologia que penetra na sua mente – já lhe terá consumido todas as faculdades e sentimentos de resistência.
Falso! Os liberais sérios e os conservadores de boa estirpe não estão acomodados, mas sim lutando contra os diferentes radicalismos. A grande diferença é que nós não achamos que só há duas alternativas de modelo, não consideramos o mundo de forma binária e maniqueísta, não enxergamos comunismo em tudo aquilo que não for reacionário. Há tons de cinza, nuances, gradações. Essa narrativa interessa justamente aos petistas de sinal trocado: em nome da guerra contra o comunismo, que estaria por todo lugar, só há uma solução: o nacional-populismo iliberal. Ou é Gramsci, ou Steve Bannon! Ou é Emir Sader, ou Olavo de Carvalho! E isso é balela.
E os isentões, onde estão? Estão jogando pedra justamente naqueles líderes que, no Brasil e no resto do mundo, querem descer ao porão para lutar contra todas essas mazelas. O isentão, quando você aperta, ele não quer uma economia livre, ele não quer uma internet livre, não quer um idioma livre capaz de expressar a complexidade e beleza do espírito humano em sua aventura multidimensional. Quer uma economia direcionada pelo conchavo político, quer o controle social da comunicação pelo monopólio da grande mídia, quer uma novilíngua continuamente empobrecida pela ditadura do politicamente correto que substitui a ditadura do proletariado como instrumento preferencial de construção do comunismo. Sim, o isentão está enclausurado no horizonte comunista.
A pecha pode até servir para alguns "liberais" que são, na verdade, "progressistas", mas a carapuça não será vestida por nenhum liberal clássico ou com viés conservador. A tática narrativa aqui consiste em transformar em sinônimo qualquer crítica aos reacionários e a defesa do comunismo. Eu condeno o globalismo, a "globalização administrada", repudio a ditadura velada do politicamente correto, mas nem por isso digo "amém" a pensadores reacionários e, muitas vezes, picaretas que monopolizam a fala em nome do bom e velho conservadorismo, enquanto pregam apenas uma "revolução reacionária", atentando contra as instituições republicanas.
Para começar, precisamos estudar o comunismo a partir do que dizem e fazem os comunistas, em lugar de sair aos gritos de “ideológico, ideológico” condenando quem o estuda e quem o enfrenta.
Concordo que precisamos estudar o comunismo. Venho fazendo isso há anos. Mas precisamos estudar as reações ao comunismo também, que muitas vezes tentaram trocar seis por meia dúzia, colocar em seu lugar um regime igualmente coletivista e totalitário. Os liberais obtiveram importantes vitórias contra os comunistas. E também contra os reacionários! O sistema capitalista liberal tem muitas falhas, precisa se adaptar às novas ameaças, depurar-se. Mas deve ser, acima de tudo, conservado. E isso não será possível se for implodido em nome do combate ao comunismo.
Outros flertaram com essa solução drástica no passado, e foram devidamente derrotados pelos liberais também. O mundo é imperfeito, as democracias liberais têm muitas falhas. Mas não é apelando para populistas messiânicos e autoritários que vamos avançar. É reformando nossas instituições, tornando-as mais sólidas, conservando os valores básicos e os princípios liberais que fizeram do Ocidente essa grande civilização. Os reacionários atentam contra tudo isso, em nome da guerra ao comunismo.
Em suma, faz mais sentido uma união entre liberais, conservadores e até mesmo "progressistas" moderados, para formar um bloco democrático contra ambos os extremos, do que se curvar diante do radicalismo de "direita" por puro medo da ameaça comunista, que pode ser real, mas também é exagerada pelos reacionários.