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Por Gabriel Wilhelms, publicado pelo Instituto Liberal
No livro Who Stole Feminism? How Women Have Betrayed Women, Christina Hoff Sommers distingue dois tipos de feminismo: o da primeira onda, chamado por ela de “feminismo da igualdade”, em livre tradução, e o da segunda onda, que ela chama de “feminismo de gênero”. Desde que o livro foi publicado pela primeira vez em 1994, também surgiu o que se chama de feminismo da terceira onda. O primeiro tipo de feminismo que Sommers identifica é calcado em valores liberais clássicos, é aquele que de fato colaborou para a extensão de importantes liberdades ao sexo feminino, sendo a base da igualdade legal que hoje indiscutivelmente existe entre homens e mulheres em países democráticos. O da segunda onda, ou feminismo de gênero, por sua vez, abandona o discurso de igualdade e investe em uma retórica radical e misândrica.
Para escrever o livro, Sommers realizou uma extensa pesquisa, chegando em diversos momentos a ir ao olho do furacão. Os relatos acerca dos tipos de devaneios identitários que ela faz são ainda mais assustadores quando pensamos que o livro foi escrito há mais de vinte e cinco anos, ao mesmo tempo em que nos ajudam a entender que toda a maluquice identitária que presenciamos hoje não é uma invenção contemporânea e sim um desdobramento de décadas de um tipo específico de militância.
Por se tratar de uma escritora americana, naturalmente o livro se foca mais nos movimentos desse país. Sommers relata os primórdios do movimento visando à extensão de direitos civis às mulheres nos EUA, como, por exemplo, uma convenção realizada em julho de 1848 visando debater a “condição social, civil e religiosa e dos direitos das mulheres”. A convenção votou e emitiu a chamada Declaração de Sentimentos, tendo Elizabeth Cady Stanton como uma das principais autoras e sendo assinada por 68 mulheres e 32 homens.
A referida declaração foi baseada na Declaração da Independência dos Estados Unidos. Nota-se aqui uma característica muito importante. Sabemos que a Declaração de Independência americana, bem como a Revolução Americana, foram fatores historicamente relevantes para o liberalismo. Sim, a declaração assinada em 1776 não promovia uma liberdade para todos, deixando de fora questões como a abolição da escravidão, que oficialmente só ocorreria quase um século depois, e a igualdade das mulheres. A despeito disso e levando em conta que é preciso contextualizar com a época, tratou-se de um avanço na seara das liberdades civis, fato reconhecido pelas signatárias e signatários da Declaração de Sentimentos. Não se visava, portanto, a reinventar a roda, não se tentava destruir o legado dos Pais Fundadores ou tratá-lo como uma chaga patriarcal; pelo contrário, reconhecia-se, por um lado, a importância desse legado, e por outro, clamava-se sua extensão a outras camadas da sociedade.
O contraste entre a Convenção de Seneca Falls e o que clamam grupos feministas radicais modernos é patente. Uso aqui a questão do feminismo como um gancho, mas a lógica pode ser aplicada a outros movimentos sociais. Historicamente são aquilo que chamamos de democracias liberais que melhor têm garantido coisas como liberdades e direitos civis. No entanto, os chamados identitários, braços mais radicais do progressismo, além de não reconhecer tal fato, se esforçam para destruir aquilo que melhor garante a liberdade de que gozam.
Em uma perspectiva histórica, é possível sim encontrar traços progressistas no liberalismo. Quando John Stuart Mill publica A Sujeição das Mulheres em 1869, defendendo coisas como o direito de as mulheres votarem e trabalharem, não há como não enxergar uma posição de vanguarda na obra. Porém, aqui há uma diferença crucial entre uma perspectiva histórica progressista do liberalismo e os identitários modernos. Prescrever uma igualdade entre homens e mulheres em meio à era vitoriana foi algo audacioso, mas uma audácia que nada tem a ver com as problematizações pós-modernas. Ora, quando tais bandeiras finalmente se transformam em realidade – sim, eu sei que isso não aconteceu da noite para o dia – e são contempladas com a justiça que merecem, o impulso seguinte é conservá-las, aperfeiçoando-as se necessário, mas longe de defender uma lógica de progresso perpétuo que pudesse vir a romper com a igualdade intencionada no princípio. É justamente o oposto do que querem os identitários.
Para o identitarismo não há herança, não há princípios, não há bases sociais a serem preservadas; tudo é obra do opressor e cabe ao oprimido ocupar o seu lugar histórico e destruir o que só existe para oprimir. Tudo estaria contaminado pelo patriarcado, pelo “racismo estrutural”, pela “homofobia estrutural”, como uma metástase em um paciente terminal, sem chance de sobrevida, sem esperanças. Eis o cerne do porquê de os identitários se colocarem como inimigos da democracia liberal e dos valores que a caracterizam: nela não enxergam legitimidade, por crerem ser obra do opressor, e por consequência cospem em tais valores, não reconhecendo as benesses que usufruem dia após dia.
Ora, não é que vivamos no paraíso e que todas as mazelas sociais, incluindo as diversas formas de preconceito, estejam extintas, longe disso; mas quem acredita que não estamos em melhor situação hoje e que essas formas de preconceito encontram a mesma penetração em nossas vidas cotidianas que tinham quando diferentes minorias eram, pela letra ou silêncio da lei, alijadas de equiparação com o resto da sociedade, está em negação da história.
Reconhecer o que foi conquistado e entender que nenhuma liberdade existe em um vácuo ou pode subsistir separada de tantas outras é o primeiro passo para que se possa corrigir qualquer mazela remanescente. Reconhecer tal progresso e herança significa conservar aquilo de fundamental que deve ser conservado e aperfeiçoar, imbuídos com os mesmos princípios e com a contemplação da liberdade, o que deve ser aperfeiçoado. No entanto, os identitários não valorizam tal herança, querem sim destruí-la; exemplo claro disso é o ataque que agora desferem contra estátuas nos EUA e na Europa. Quão contraditório pode ser um grupo que se denomina como antifascista vandalizar a estátua de Winston Churchill? De que forma defenestrar alguém como George Washington colaborará para o combate ao racismo? Nenhuma. Sim, o general e primeiro presidente americano era proprietário de escravos e a escravidão é uma instituição indefensável, mas será que é possível demonizar com uma ótica contemporânea alguém que possuía escravos no século XVIII e com isso apagar todo o mérito de sua biografia? Obviamente não.
(Continua…)