Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Nosso amigo Bruno Garschagen publicou um livro intitulado Pare de acreditar no governo: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado, abordando esse comportamento típico de boa parcela de nossos compatriotas de espinafrar seus representantes eleitos, mas demandar mais e mais a presença, nas nossas vidas, do mesmo Estado que eles operam. No entanto, se isso é verdade, convive com o sucesso de alguns líderes políticos em se converterem em salvadores da pátria, ídolos inquestionáveis, personalidades quase santificadas.
Como diria outro prezado pensador, o professor Thomas Giulliano, é possível que alguns políticos consigam fazer parecer, perante seu séquito, que eles transcendem a própria figura de um político em si mesma. Por suas características morais, por se terem submetido ou sido submetidos a sacrifícios e agonias extremas, por exibirem grande poder carismático e identificação com a linguagem e aspirações simbólicas das pessoas, eles são vistos como feitos de uma cepa totalmente diferente dos outros. São a encarnação do bem que varrerá a podridão do mal que reina na política – frise-se, a política dos outros.
Não se pode dizer que alguém tenha inventado o populismo, que ganha força na era da democracia de massas e da propaganda. No entanto, no Brasil, depois que a sociedade experimentou a “orfandade” de seu imperador com a proclamação da República e atravessou o período da elitista República Velha, existe um DNA muito característico do populismo santificador dos líderes de massa: o DNA de Getúlio Vargas. Praticamente tudo que assim se entenderia no país depois dele se identifica com a linha-mestra do que ele e sua escola de herdeiros políticos perpetraram após a Revolução de 30 e o golpe tirânico de 1937.
Pensei no assunto porque, vasculhando os documentos antigos de minha já saudosa avó materna, encontramos uma espécie de “santinho”, um panfleto que parece ter vindo ao lado de cédulas de candidatos varguistas nas eleições que sucederam ao suicídio do caudilho de São Borja. O texto, que vem junto com uma foto de Vargas e a réplica da famosa – e delirante – Carta-Testamento, serve de exemplo e alerta para identificarmos e temperarmos esses sinais indesejáveis em qualquer tempo. Convido o leitor a apreciar o modo por que se fazem associações religiosas ao falecido ditador, até empregando o termo “Ele” em letra maiúscula para isso, como se Vargas fosse Deus:
“Os candidatos, cujas cédulas se encontram junto a este, cumprimentam e oferecem esta lembrança como modesta homenagem àquele que se sacrificou por nós, por vós, pelo Brasil.
Se eleitos, seremos a voz de vosso protesto constante, permanente, contra aqueles que imolaram o protetor e amigo dos humildes e desamparados.
Defenderemos o interesse desse povo que Ele tanto amou, e a sua memória, pois Ele nos deu a sua vida e nos ofereceu a sua morte para a nossa sobrevivência e de nossos filhos e a de nossas esposas.
Seu sangue será a chama imortal na nossa consciência, que nos manterá unidos para a resistência.
COMPANHEIRO!
Nós seremos a espada de vossa resistência e que há de sair das urnas em três de outubro de 1954; que demonstrará a seus inimigos que ELE não morreu, será a nossa, a vossa Bandeira na luta pela redenção e a Independência de nossa PÁTRIA. VIVA GETÚLIO VARGAS!”
Algumas passagens poderiam nitidamente ter sido ditas por um cristão católico ou protestante a respeito de Jesus Cristo. No entanto, é um texto que circulou como apelo de políticos mais do que fartos de se alimentar da máquina pública durante a ditadura de Getúlio, apelando para a sensibilização das pessoas depois que um ex-ditador acossado pelo “mar de lama” resolveu ter a “coragem” de se matar com um tiro no peito. O suicida cuja guarda pessoal ilegal abrigou o mandante do assassinato de um jornalista de oposição virou uma vítima imolada pelos inimigos dos humildes e desamparados.
Isso, em primeiro lugar, faz-nos relativizar nosso horror contemporâneo à “polarização”. O que é ser chamado de “bolsominion” ou “socialista fabiano” perto de ser chamado de “imolador”, não é mesmo? Todos que faziam oposição a Vargas se tornaram assassinos.
Em segundo lugar, abre as portas aos paralelos que se podem traçar. Não dizem outro tanto os petistas hoje? Bradam aos quatro cantos que Lula – já identificado com o universo religioso a ponto de ter sido lançado recentemente um livro sobre sua ligação com a espiritualidade, redigido por diversos religiosos (ou panfletários da religião política lulista travestidos de religiosos) – é uma vítima da sanha dos inimigos dos pobres, que não suportam vê-los andar de avião. Alegam que foi acossado pelos golpistas neoliberais vendidos aos ianques através de um fascismo judiciarista que perpetrou o impeachment da “companheira” Dilma e colocou o grande santo barbudo atrás das grades por um tempo…
Da mesma forma, a despeito de a chapa Bolsonaro-Mourão ter amealhado um pacote de forças e ideias entre as quais existem agendas conservadoras e liberais de nosso interesse e de o presidente ter sido vítima, enquanto candidato, de uma abominável facada que quase o matou, isso tudo não pode fazer do atual mandatário da República imune a críticas, “ungido por Deus para santificar a política brasileira e nos salvar da podridão”, como algumas pessoas, sinceramente ou não, parecem acreditar, a julgar por algumas publicações em redes sociais. Não que as pessoas não possam interpretar os fatos políticos a partir de uma ótica de fé, mas se isso inibir a capacidade e mesmo a disposição para a apreciação crítica, temos um problema.
Políticos podem ter carisma e ser admirados. Carlos Lacerda tinha e acreditava nisso e, como seu admirador e divulgador, não poderia concordar mais com ele. É excelente que haja líderes carismáticos ajudando a operar as boas ideias. No entanto, o carisma não pode ser tudo a ponto de transcender as agendas e programas a serem sustentados. Quanto a isso, os políticos – sem exceção – podem e devem ser cobrados, o tempo inteiro, pelos cidadãos conscientes.
O mais importante não é termos mitos salvadores atuando em nosso nome contra o mal, mas diminuir o tamanho do Estado, partindo-se do reconhecimento de nossa diminuta e imperfeita condição humana. Eis o que não podemos perder de vista.
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