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O pecado e o pecador
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Por Igor Damous, publicado pelo Instituto Liberal

Recentemente me pus a ler um artigo intitulado Como Luigi Ferrajoli destruiu o direito brasileiro[1], do promotor Leonardo Giardin de Souza, que ficara famoso pelo livro Bandidolatria e Democídio. Definitivamente, o nome do artigo me chamou a atenção. O direito brasileiro realmente está em ruína e finalmente tinham descoberto o culpado.

E, mais uma vez, mais uma decepção – claramente fora um alarme falso. Eu teria tido paciência em ler um artigo inteiro criticando Luigi Ferrajoli por seu passado – muito presente – militante, por seus artigos nojentos e por seus ideais que parecem com seus artigos. Em verdade, eu até me divertiria bastante em ler um artigo desses, recheado de debochadas críticas aos auto conclamados “garantistas” – chatos e velhos conhecidos meus, que ainda espero pelo dia em que se assumirão abolicionistas, que é o que são. Porém, algo me incomodou desde o início e me fez ler o artigo inteiro com um olhar sherlockiano: a crítica ao Garantismo como ideia.

No referido artigo há somente uma citação ao livro que teria “fundado” o chamado Garantismo Penal – Direito e Razão – citação essa de 7 páginas, de um livro de aproximadamente 950[3]. Um livro extremamente denso e por muitas vezes contraditório em seu próprio discurso – provavelmente escrito por várias mãos que nunca entraram em consenso. Mais que tudo, um livro que acerta muitas vezes e que erra muitas outras; e erra muito, especialmente naqueles trechos conclusivos – momento em que dez em cada cinco teóricos erram –, trechos esses que foram aqueles citados no artigo em questão.

O problema de se criticar uma ideia é que para este árduo trabalho há que se ter temperança; e quando falo em temperança, falo muito mais em relação a quem a escreveu do que à ideia em si. Não se trata de não jogar fora o bebê junto da água do banho, mas de antes de tudo controlar a implacável tentação de se jogar fora o bebê primeiro.

Digo isso porque já vi muitos marxistas se apoiarem no Garantismo Penal para encontrarem suporte para suas ideias transloucadas de sempre e se depararem com respostas contrárias duríssimas no corpo daquele texto. Não duvido muito que até mesmo Ferrajoli tenha se sentido desconcertado por diversas vezes ao ser confrontado com as críticas que escreveu às suas próprias ideias.

Isso não é tão incomum. Basta lembrar que o maior inimigo dos ideais de George Orwell é o George Orwell de 1984. A resposta para esse estranho caso stevensonesco é muito simples: existem ideias e existem pessoas. Lord Acton uma vez dissera: “as ideias têm uma radiação e um desenvolvimento, uma ancestralidade e uma posteridade por si mesmas, nas quais os homens atuam como padrastos e madrastas mais do que como pais legítimos[4]”.

O que o grande historiador britânico nos quis dizer é que pessoas e ideias não são dependentes entre si, não andam de mãos dadas, não são simbióticas. Quando uma pessoa escreve uma ideia, ele revela sua visão sobre as coisas: fala de si, mas também fala do mundo[5]. Assim, ideias boas não foram criadas por grandes mentes, elas simplesmente foram descobertas, vistas em sua pureza, depuradas pela percepção do autor e trazidas a nós – sem a perfeição do que são. É por este motivo que elas guardam suas próprias causas, suas inerentes consequências, não obedecendo às intempéries da instabilidade intrínseca de seu descobridor, submetendo-se unicamente às regras fundamentais que as sustentam[6]. Descobrir uma ideia é um grande ato, pois equivale a abrir a jaula de uma fera para os homens; e abrir os olhos dos homens para a fera.

É inequívoco que, ao menos naquele momento em que escrevera o artigo Marxismo y Cueston Criminal, Luigi Ferrajoli era marxista. Talvez Luigi Ferrajoli ainda seja marxista – é o que pelo menos parece quando lemos o artigo O estatuto epistemológico da criminologia[7], transcrição do discurso proferido por Luigi Ferrajoli em 2013, no Brasil. Existe até a possibilidade de que Luigi Ferrajoli permaneça marxista por toda a extensão de vida que lhe resta.

No entanto, é importante dizer que, mesmo que assim seja, marxismo não é uma característica essencial a todos os atos de Luigi Ferrajoli. Talvez marxismo seja uma característica essencial a Karl Marx – assim como provavelmente o karlismo o é –, mas não o materialismo histórico dialético. A práxis não é independente da metafísica, mas também não se confundem ambas. A liberdade humana dá ao homem a capacidade de decidir o que defende, o que pensa e como age, de modo que, se este se identifica com uma ideologia específica, precisa racionalmente escolher pelos valores condizentes com esta ideologia dentre milhares de outras opções, a cada instante. Se há liberdade, haverá, consequentemente, falibilidade. E isso quer dizer que ele pode falhar até mesmo em ser falho[8].

Não há um radar ideológico natural, um compasso que guie para a Verdade, ou que afaste da mentira – ou aproxime, caso queira –, que o situe entre ideologias. O homem só conhece o mundo à sua volta, só materializa sua consciência em atos, através do processo de reflexão. É como se guiar diante da tempestade das emoções, no mar da existência, guiado somente pela Estrela da Manhã. Se abdica desta estrela, o marinheiro das ideologias só depende de si mesmo e de sua visão – e para isso precisa confiar nela. Uma falha de reflexão, um cálculo errado, pode levá-lo a caminhos que desconhecia ou até repudiava, em nome daquilo a que em verdade pretendia se ater.

Assim, um homem que se diz liberal, por exemplo, pode perfeitamente defender algo diametralmente oposto à ideologia liberal, seja por erro ou por malícia. Independente da razão, o erro deste homem não invalidará ou mudará a estrutura da ideia que diz defender[9]. O liberalismo – enquanto ideia que é – permanece intacto[10].

Mesmo que se fale daquele que tenha “inventado” a ideia, não é ele quem carregará a coleira do monstro que retirou dos confins do impossível[11]. A ideia saiu de lá, sozinha, sendo o homem seu instrumento. Homens descobrem ideias, mas nunca as domam. Homens são amigos de ideias, fazem pactos com elas, mas nunca as domam. Aqueles que tentam logo descobrem: homens não domam ideias, mas ideias podem domar homens. É daí que nascem os loucos.

Se ideias boas podem ser contraditas pelas palavras de seus próprios profetas, o que falar de uma ideologia que é contraditória desde seu nascedouro?

Não é muito novidade que o marxismo, como materialismo histórico dialético que é, carece de propriedades sistemáticas necessárias para observar meios, princípios e entes que pertençam à metafisica. Mais do que isso, unindo o utopismo, o coletivismo e o materialismo – todos intrínsecos a essa bizarra combinação que convencionamos chamar de marxismo -, o certo e o errado passam a ser medidos pelos fins pretendidos[12], de forma que há plena acomodação de contradições no seio da ideologia marxista. Desde que, claro, tais contradições levem à Utopia. Não é à toa que Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força[13]

Assim, se é um erro julgar ideias por seus descobridores, ou aqueles que carregam sua bandeira, o que dizer de homens que carregam consigo o brasão do materialismo histórico dialético – a ingrata companhia da sempre presente contradição? A verdade é que homens não são liberais ou conservadores; mas homens que são marxistas, sequer são – eternamente estão[14].

No momento em que se descobre que Luigi Ferrajoli é marxista, o que se descobre também é que se trata de um homem de intenções duvidosas – um ser humano capaz de usar todo tipo de artimanha para chegar aos resultados lunáticos que pretende, até mesmo falar a verdade. Enquanto um homem comum escreveria a Suma Teológica para aquietar sua mente e iluminar o mundo, um marxista poderia bem escrever a Suma Teológica para arremessá-la na cabeça de seus inimigos ou para vender milhares de cópias em alguma grande livraria capitalista. O problema do materialista não é que ele não é capaz de falar a verdade – ele é capaz de falar a verdade[15]; o problema do materialista é que ele nunca será capaz de reconhecê-la.

Desse modo, é importante que, para que se faça uma análise tendente a criticar ou elogiar o Garantismo, essa análise se volte a estudar o Garantismo enquanto ideia, e não Luigi Ferrajoli. Não importa o quanto Ferrajoli idolatra bandidos, da mesma forma que não importa o quanto Aristóteles é amigo da Verdade – se Aristóteles aparecesse um dia em minha casa falando que tudo o que o proletário produz ao proletário pertence, eu chutaria O Filósofo porta a fora de qualquer jeito.

Ao ocupar todo o seu artigo criticando o autor do Garantismo, o autor do referido artigo simplesmente critica o pecador, o que o faz deixar o pecado incólume – e é a ele que se pretende atacar, assim espero. Além disso, o autor corre o risco de tachar como marxistas todas as ideias presentes no Garantismo, simplesmente por possuírem um interlocutor que se diz marxista – o próximo passo será considerar feminino todo ato de um homem que se diz mulher; então, todo cuidado é pouco.

Mais do que isso, tapando os olhos para tudo o que um mentiroso fala, nos protegemos da mentira ao mesmo tempo em que nos protegemos da verdade[16]. A maioria das mães omite o fato de que, no final daquela fábula do Pastorzinho Mentiroso, os pastores que desconfiam e o pastor mentiroso ficam vivos, mas as ovelhas viram jantar[17] Não se trata de uma lição só para pastores, mas também uma lição para ovelhas: não confiem no mentiroso, mas também não confiem nos que desconfiam; olhem com seus próprios olhos.

Não acredito que, considerando o atual estágio em que se encontra a sociedade, seja tolerável perder de vista possíveis boas ideias simplesmente devido à existência de tantas ideias más. Ou, aguçando mais ainda a reflexão, talvez a sociedade se encontre no estágio em que está exatamente pelo descarte irresponsável de ideias.

Por último e ainda mais importante, confundir pessoas e ideias é um grave sintoma da mesma doença de que parecem padecer Luigi Ferrajoli e tantos outros “intelectuais orgânicos”, bem como seus predecessores. Isso se dá exatamente pelo fato de no pensamento materialista não existir uma realidade metafísica anterior, de modo que ideias se tornam simplesmente fruto da subjetividade de uma pessoa, que é fruto de um existir social ou biológico. Assim, mais importante é definir o quem social a que uma pessoa pertence (negros, mulheres, burgueses, intelectuais orgânicos…), para depois traçar a ideia que dele se manifestará. Toda essa ligação seria inevitável, de forma a se consolidar uma consciência de classe. Como exemplo desse pensamento: Luigi Ferrajoli é, antes de tudo, marxista e intelectual, logo, intelectual orgânico, de modo que tudo o que faz – do seu bom dia ao seu bocejo antes de dormir – se volta a libertar os oprimidos das amarras burguesas. Luigi Ferrajoli não ama, não chora, não ora, não teme – Luigi Ferrajoli milita.

É óbvio que pensar dessa forma é um convite à loucura.

Uma loucura que consiste em sermos domados pela ideia de que todos os outros homens já foram domados por ideias, e dentre todos aqueles que foram domados por ideias só os que foram domados pela mesma ideia que nós serão nossos amigos, e todos aqueles que foram domados por outras ideias serão nossos inimigos.

Quando me convocaram para uma guerra cultural, cogitei que encontraria em algum dos lados gente culta. Ou ao menos em algum momento a cultura viesse a aparecer – ou sumir – ou que ao menos estivessem lutando por ela; mas não é o que vejo. Da mesma forma, não vejo guerra nenhuma; pelo que parece se trata simplesmente de um amontoado de loucos que decidiram seus lados e começaram a atirar coisas uns nos outros, como se estivessem brincando no intervalo entre as sessões de terapia.

Se há uma guerra, ela sempre será entre aquele que cria e aquele que destrói. Entre o humano que reconhece a si no outro e o escravo que não se reconhece e jamais reconhecerá alguém[18]. Entre aquele que julga homens por suas ideias e aquele que julga ideias por seus homens.

Não é uma guerra de lados, é uma guerra de um lado só: a guerra é pela Verdade, e veritas est adaequatio rei et intellectus[19]Assim, julguemos o Garantismo por aquilo que é e pelo quanto ele se adequa ou não às coisas e deixemos de julgar o Garantismo pelos garantistas (ou Ferrajoli).

[1] Disponível no link: https://www.burkeinstituto.com/blog/direito/luigi-ferrajoli-destruiu-o-direito-brasileiro/. Acessado pela última vez em 29 de janeiro de 2019;

[2] “Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já, na Décima Primeira Edição, não estamos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer uma crimidéia. É apenas uma questão de disciplina, controle da realidade. Mas no futuro não será preciso nem isso. A Revolução se completará quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua” ORWELL, George. 1984. Londres: Martin Secker & Warburg Ltd

[3] FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón, Teoria del Garantismo Penal. Ed. Trotta: Madri, 1995.

[4] ACTON, John Emerich Edward. Darwin and the Darwinian Revolution: In Gertrude Himmelfarb. 1962, Nova Iorque: Doubleday & Co. Inc. p 380

[5] “Do mesmo modo, a verdade, estando no intelecto, enquanto este se conforma com a coisa intelegida, necessariamente a noção da verdade deriva para essa coisa, de maneira que também esta se chama verdadeira, enquanto se ordena, de certo modo, para o intelecto.” AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. Questão 16: artigo 1.

[6] “Porque a diversidade das partes da oração causa a diversidade dos enunciáveis, como porque dela resultaria, que uma proposição verdadeira, uma vez, sê-lo-ia sempre, o que vai contra o Filósofo, que diz que a oração — Sócrates está sentado — é verdadeira, estando ele sentado, e falsa, quando se levanta.” AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. Questão 14: Artigo 15.

[7] Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/noticias_todas/traducao_do_texto_do_professor_Luigi_Ferrajoli.pdf.

[8] “Vamos nos lembrar de que um traidor pode trair-se a si mesmo e fazer o bem que não pretende. Pode ser assim, algumas vezes” – TOLKIEN, J.R.R. Senhor do Anéis. p 1160

[9] “E, uma vez que nossas aprovações e desaprovações são assim reconhecimentos do valor objetivo ou respostas a uma ordem objetiva, os estados emocionais podem, portanto, estar em harmonia com a razão (quando sentimos afeição por aquilo que merece aprovação) ou em desarmonia com ela (quando percebemos que a afeição é merecida mas não conseguimos senti-la)”. LEWIS, Clive Staples. A Abolição do Homem. Posição 182-184 (e-book)

[10] “Não, a visão é sempre sólida e confiável. A realidade é que muitas vezes é uma fraude. Como sempre fiz, mais do que nunca o fiz, eu acredito no liberalismo. Mas houve um róseo tempo de inocência em que eu acreditava nos liberais”. CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. Posição 841-843 (e-book)

[11] “Isso contribuiu para que se criasse uma atmosfera moral na qual a simples enunciação de sentimentos virtuosos (e de abjuração da crueldade) fosse confundida (ou tomada como) a virtude em si.” DALRYMPLE, Theodore. Em Defesa do Preconceito. Posição 207-208 (e-book)

[12] POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos: tradução de Milton Amado. Belo Horizonte. Ed Itatiaia: São Paulo. Ed da Universidade de São Paulo, 1974. 2v p 173

[13] ORWELL, George. 1984.

[14] “Por que você supõe que eles seriam homens tão maus?” Mas eu não suponho tal coisa. A rigor eles nem sequer são homens (no sentido antigo).” LEWIS, Clive Staples. A Abolição do Homem. Posição 620-621 (e-book)

[15] “A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão.” CHESTERTON. Gilbert Kleith. Ortodoxia. Capítulo 2: O Maníaco. Posição 289 (e-book)

[16] “Mas muitas vezes a verdade se esconde nas mentiras” TOLKIEN, JRR. Senhor do Anéis. p 378.

[17] Aqui, por óbvio que me refiro à famosa fábula de Esopo sobre o Pastor que teria comunicado falsamente a presença de um lobo para conseguir a companhia dos outros pastores e, na segunda vez que teria feito isso, já não mais possuindo da confiança dos outros pastores, fora responsável por uma chacina de pobres ovelhas.

[18] “É sábio reconhecer a necessidade, quando todas as outras soluções já foram ponderadas, embora possa parecer tolice para aqueles que têm falsas esperanças. Bem, que a tolice seja nosso disfarce, um véu diante dos olhos do Inimigo! Pois ele é muito sábio, e pondera todas as coisas com exatidão. Nas balanças de sua malícia. Mas a única medida que conhece é o desejo, desejo de poder; e assim julga que são todos os corações. Seu coração não cogita a possibilidade de qualquer um recusá-lo; de que, tendo o Anel em mãos, vamos procurar destruí-lo. Se tentarmos fazer isso, vamos despistá-lo.” TOLKIEN, JRR. Senhor dos Anéis. p 382.

[19] “Quando, porém, dizemos que a verdade é a adequação da coisa com o intelecto, essa definição pode convir a um e outro modo “. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. Questão 16: artigo 1.

*Igor Damous é advogado criminal.

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