Por Alex Pipkin, publicado pelo Instituto Liberal
O capitalismo está mesmo em crise? Ou estaríamos vivendo apenas mais uma fase daquilo é intrínseco ao sistema, isto é, a sua contínua destruição criativa?
Parece que a mola mestra do capitalismo é justamente a capacidade de se reinventar continuamente, transformando processos econômicos e sociais a fim de resultar em inovações de valor e maior prosperidade para todos. Pelo menos é isso que se espera!
Então por que existem tantos movimentos contrários ao sistema de mercado na atualidade?
Descontentamentos pelo mundo potencializam a chegada ao poder de ideologias populistas tanto de esquerda como de direita. É o que afirmam alguns cientistas políticos. Embora me pareça mais sensato classificar o debate entre correntes e visões políticas mais ou menos intervencionistas e, similarmente, mais ou menos populistas de fato.
A questão central deveria ser “o que” o governo deve regular – e bem – para o melhor funcionamento possível dos mercados!
O historiador escocês Niall Ferguson tem recitado o usual “coquetel” empregado por líderes populistas: restrição à imigração, reação contra o livre comércio, ataques contra as elites políticas e justamente o aparecimento de “outsiders” na cena política.
O sistema de mercado, responsável pela geração de verdadeiro crescimento econômico e social, e aumento da prosperidade em nível global agora encontra-se sobre ataque e sofre severas críticas de todos os lados.
Evidente que sua legitimidade é contestada por todos aqueles que culpam o “fundamentalismo de mercado” pelo processo de acumulação e concentração do capital, criador da desigualdade social.
Supostamente empresários “capitalistas”, num mundo repleto de cadeias globais de valor, denunciam a concorrência global desleal e, muitas vezes, opõem-se a abertura de mercados.
Os primeiros não querem enxergar que são os mercados que geram valor econômico, alocando de forma mais racional bens e serviços, estimulando comportamento empreendedor, premiando o mérito pela descoberta de oportunidades e a criação de inovações por meio do avanço tecnológico.
Importante notar que uma série de empresas com visão de futuro, já tem alterado incentivos e indicadores de desempenho para o atingimento de objetivos diretamente ligados à inovação de valor, mirando o bem-estar das partes interessadas em todas as comunidades em que operam.
A maior eficiência econômica deve ser alcançada num ambiente competitivo, ou seja, com livre, efetiva e sadia concorrência, com adequada regulação do Estado.
Os segundos, na verdade, não querem operar num sistema capitalista de fato, ou seja, em mercados genuinamente livres, com a concorrência efetiva, que exige que eles melhorem seus processos visando a agregar mais valor para resolver os problemas dos consumidores e/ou encontrar mecanismos de eliminação de desperdícios e redução de custos. Tais “capitalistas” desejam lucrar por meios muito distintos da lógica “real” de mercado.
Nesse complexo cenário, creio que deveriam reemergir produtivamente as ideias fundamentais do grande filósofo escocês Adam Smith.
Smith, por meio de suas obras Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e A Riqueza das Nações (1776) – que deveriam ser lidas como uma obra unificada, única -; defendia a liberdade do indivíduo, o laissez-faire (deixar fazer), o livre mercado e, portanto, era um advogado da não intervenção estatal na economia, não da inexistência do Estado.
De maneira alguma pode-se enquadrar Smith como um “apologista da desigualdade” e da voracidade do homo economicus, pela ganância de lucro a qualquer custo.
Seu argumento de que o homem, mesmo agindo por conta de seu interesse próprio, estaria beneficiando os outros é bastante conhecido pela famosa “mão invisível”. Todos aqueles que leram e compreendem a obra smithiana (unificada) percebem que o egoísmo esclarecido de Smith (“o egoísmo bom”) diverge em muito do egoísmo materialista (“o lado ruim”) de que alguns, mais à esquerda, querem lhe dar a paternidade.
Adam Smith não só alertava para a importância de um Estado regulador eficiente, como até mesmo defendia a intervenção estatal em algumas situações, intervenção essa que ele tanto procurou combater.
Um dos principais temores e alvos de Smith dizia respeito à formação de estruturas de mercado monopolísticas e as correspondentes relações de compadrio entre empresários e o Estado que podem ser estabelecidas com objetivo de desvirtuar a dinâmica de mercado a fim de fazer prevalecerem interesses próprios e/ou corporativos.
Desse modo, para ele o papel regulador do Estado é indispensável, tendo em vista que a ordem de mercado é dependente dos incentivos – ou desestímulos – para a respectiva liberdade de mercado.
Creio ser fundamental e crítica a implementação de políticas públicas que atuem fortemente para conter e reduzir a concentração de mercado que se verifica através das estruturas de oferta monopolizadas e na eliminação de benefícios fiscais para setores que não necessitam e que não trazem benefícios e nenhuma contrapartida para a sociedade.
Políticas públicas deveriam beneficiar grande parte da população ao invés de atender aos interesses poderosos de poucos empresários com grande poder de influência.
Smith argumentava que a intervenção política poderia tanto destruir o funcionamento do mercado, como também qualificar seus processos.
Para que se possa melhor compreender a “crise do capitalismo” e os “ajustes” necessários ao sistema de mercado atual, Smith nos disponibiliza um poderoso arsenal de conceitos e ideias para os quais seguramente deveríamos atentar.
Cabe lembrar que Smith foi um professor de filosofia moral. Justamente por isso, é crucial entender que TSM (1759), um trabalho sobre psicologia moral, deve ser interpretado de forma conjunta com a obra de economia política que é a RN (1776).
Mercados são instituições dinâmicas mediadas por um regramento jurídico, mas especialmente por normas e condutas sociais e éticas que moldam os atores econômicos e que, por sua vez, moldam os mercados.
Nesse sentido, o capitalismo deve ser regulado por meio de leis, regras, ética e justiça a fim de que a economia de mercado possa sobreviver e prosperar.
As trocas nos mercados impõem a consideração e a estima pelo outro, numa relação de dependência dialógica, implícita na interação social através de princípios, moral e relacionamentos sociais. Não é por acaso que Adam Smith tanto enaltece a capacidade de imaginação e a constante presença do espectador imparcial.
Mas, afinal, as críticas ao sistema capitalista de mercado são justificadas? Onde se encontra o problema? É preciso “corrigir” e reformar o capitalismo?
Honestamente, penso que aquilo que precisa ser reformulado na economia de mercado não diz respeito à presença ou não do Estado na economia, mas efetivamente à visão sobre qual é sua função – função vital de focar e atuar para o bom funcionamento dos mercados! Seu principal papel, a meu juízo, nitidamente refere-se à garantia e manutenção de verdadeiras condições competitivas nos mercados!
No contexto democrático, cabe ao Estado legitimar e preservar a ordem, a lei e a liberdade individual. Aspirando a aperfeiçoar os mecanismos democráticos, só teremos melhores líderes na política à medida em que houver ação efetiva na transformação das políticas educacionais, com o Estado investindo recursos de forma adequada e melhorando a qualidade do ensino brasileiro, em especial na educação de base. Com tais iniciativas, os eleitores passarão a ter melhores condições de reflexão e escolha política para além dos apelos populistas de despreparados.
É função precípua do Estado chancelar a liberdade nos mercados, incentivando a construção de relações comerciais baseadas na ética e na confiança entre as partes interessadas. Nesse sentido, o capitalismo smithiano é realmente distinto daquilo que tem imperado nos mercados da atualidade.
Smith advoga que os indivíduos devem perseguir seus próprios interesses, porém isso não implica a adoção de comportamentos antiéticos e abusivos por parte de agentes econômicos na busca desenfreada do lucro. Seu desejo por mercados livres baseava-se na esperança de que as pessoas pudessem trocar no mercado e gerar rendas individuais sustentáveis para elas próprias. Ele não previa que indivíduos pudessem ser explorados nas trocas em razão de comportamentos imoderados e censuráveis pelo único e voraz desejo do lucro, doa a quem doer.
Acreditava ele que a divisão do trabalho e o aumento da produtividade ampliariam as oportunidades para a realização de trocas “justas” entre os atores econômicos que ao cabo beneficiariam a comunidade como um todo.
Assim, aparenta-me ser um grande erro de interpretação creditar a Smith o fato de que as trocas nos mercados, fruto do sistema de produção capitalista, sejam responsáveis pela geração de desigualdades de renda e que essas sejam potencializadas nos mercados livres.
Adam Smith afirmava que os mercados são justificados por sua função social! Nesta direção, a função do Estado é criar condições de garantia de real concorrência e, no caso da existência de distorções, regular fortemente para que concorrência genuína possa ser restabelecida.
Vejamos então o que tem acontecido nos sistemas financeiros na atualidade. Os bancos, mesmo após a crise de 2008, continuaram estabelecendo suas próprias regras de operação, apesar de todos os esforços que foram empreendidos pelos governos e órgãos reguladores que objetivavam regular e aperfeiçoar a governança, impulsionando e reforçando a presença de comportamentos mais éticos e responsáveis.
Se isso não é verdadeiro, como explicar que no Brasil a taxa básica de juros (Selic) seja de 5% ao ano – embora continue sendo uma das maiores no mundo – enquanto os bancos privados cobram taxas de empréstimos na ordem de aproximadamente 10%?
Evidente que essa situação só é permitida e facilitada pela inexistência de genuína concorrência no mercado bancário nacional!
A concentração bancária no país é absurda: as cinco maiores instituições, Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Santander, detêm 81,2% dos ativos totais do segmento bancário comercial. Que tipo de comportamento responsável verificamos nessa calamitosa circunstância? Não haveria uma espécie de negligência por parte das autoridades estatais quanto aos mecanismos de funcionamento do segmento bancário e nos respectivos incentivos que deveriam ser gerados a fim de melhorar as condições de competitividade neste setor?
Em seu livro Capitalismo e Liberdade (2014), Milton Friedman, um liberal nato, afirma que “… existe uma e apenas uma responsabilidade social dos negócios – usar seus recursos e participar de atividades projetadas para aumentar seus lucros…”, contudo há uma condição: “… desde que ele permaneça dentro das regras do jogo, ou seja, se envolva em competição aberta e livre, sem engano ou fraude”!
A própria condição mencionada por Friedman, referente às regras do jogo, implica a inevitável ação estatal na definição, no estabelecimento e no controle das políticas públicas e das regras – boas – para o bom funcionamento dos mecanismos de mercado.
Mesmo naquelas transações produtivas e comerciais operadas dentro das cadeias globais de valor, em que são integradas e interagem uma série de empresas, algumas comandadas por grandes compradores no varejo, outras coordenadas por grandes transnacionais industriais, devem existir mecanismos de governança corporativa que regulem e controlem o comportamento de todas as partes envolvidas com o objetivo de dotar tal cadeia de maior grau de competitividade na geração de valor econômico e de valor quanto às práticas ambientais e sociais. Tal coordenação estratégica, executada em especial pelas empresas focais, necessita resultar em comportamentos e ações saudáveis para toda a sociedade, seja por uma postura responsável e proativa por parte das organizações e/ou pelo marco regulatório imposto e de responsabilidade dos governos.
Num ambiente competitivo em que notoriamente são valorizados comportamentos ambiental e socialmente mais responsáveis, pondo em relevo a reputação das organizações, empresas que se preocupam genuinamente com “os outros”, operam seus processos compartilhados em toda a cadeia de valor de forma mais ética e consciente a fim de criarem uma imagem corporativa mais positiva e, assim, ficarem menos expostas aos ataques “especulativos” da mídia e da população.
Creio que as origens dos negócios inovadores de impacto ambiental e social já estavam expostas no pensamento smithiano.
Nesse sentido, observa-se que, na economia de mercado presente, parte das empresas passa a concentrar sua atenção e estratégias para a maximização do valor para além dos acionistas, ou seja, trabalham com muito maior intensidade visando ao bem-estar de todas as partes interessadas num determinado contexto, incluindo seus clientes, trabalhadores, fornecedores, entre outros.
Objetivamente, não me parece que a regulação adequada e justa dos mercados, por parte da atuação do Estado e de suas agências – independentes – gere qualquer tipo de restrição e censura, uma vez que visa ao estabelecimento de políticas públicas e econômicas capazes de controlar e punir excessos e “abusos” verificados nos mercados.
O pensamento liberal corretamente prega que deve haver ampla liberdade no mercado, entretanto, quando se constatam a falta de uma visão do todo envolvido e a escassez de um senso apurado de justiça nas relações estabelecidas e desenvolvidas nos mercados por determinadas organizações, compulsoriamente deve haver intervenções a fim de mitigar tais comportamentos. Aqui é que entra em cena a premente atuação do Estado como instituição reguladora e garantidora da genuína competição, a fim de que todos os indivíduos e toda a sociedade possam auferir melhores resultados.
Em última análise, creio no papel do Estado no sentido de desestimular e coibir comportamentos oportunistas e egoístas daquelas organizações que não operam, em seus mais diversos processos empresariais, com base em princípios e valores éticos e que, desse modo, acabam por impactar negativamente todo o tecido social e o respectivo desenvolvimento econômico e social.
Não resta dúvida de que esse era o pensamento e os ideais de Adam Smith quanto à atuação dos governos em relação a liberdade no mercado! A real ambição de Smith era a criação de uma sociedade mais livre, justa e próspera por meio de normas morais e sociais mais virtuosas.
O capitalismo smithiano contempla verdadeiro compromisso com todos os indivíduos de um contexto social.
Nessa perspectiva, não tenho dúvida de que a maior intervenção estatal requerida diz respeito à formulação de políticas públicas que melhorem a estrutura, o foco e a qualidade da educação e pesquisa no Brasil.
Em situação reformista, ou melhor, de aperfeiçoamento dos processos, visando a um sistema de mercado mais eficiente, a fim de que alcancemos resultados compartilhados e benéficos para as partes envolvidas e a sociedade, por meio das transações relacionais nos mercados, especialmente quanto ao envolvimento do governo e o incentivo a comportamentos mais responsáveis e justos, um dos caminhos mais promissores para se estudar, refletir e propor ações de melhoria para os mercados, sem dúvida, é revisitar Smith.
*Alex Pipkin é professor Mestre e Doutor em Administração, concentração em Marketing pelo PPGA da UFRGS.
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